Assistindo
o quadro “Vai fazer o que” do programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão
na noite de hoje (25/08/2013), onde colocaram 3 pessoas diferentes serrando uma
corrente que prendia uma bicicleta a um poste, logo me veio em mente a teoria
do etiquetamento, muito desenvolvida na área da Criminologia. Desta forma,
aproveito para compartilhar com vocês um pequeno artigo escrito por mim e por
meus colegas de Doutorado Cristiano Lázaro Fiuza Figueiredo e Caio Mateus
Caires Rangel para a disciplina Direito e Multiculturalismo do excelente
professor Dr. José Luiz Quadros de Magalhães.
Por Diego Augusto Bayer, Cristiano Lázaro Fiuza Figueiredo e Caio Mateus
Caires Rangel
A teoria
do etiquetamento, também conhecida como “labelling aprouch”, bem
defendida por Becker em seu livro “Outsiders”[1],
é enquadrada como a “desviação”, ou seja, uma qualidade atribuída por processos
de interação altamente seletivos e discriminatórios. Tem esta teoria como
objeto os processos de criminalização, ou seja, os critérios utilizados pelo
sistema penal no exercício do controle social para definir o desviado como tal.
Realiza-se,
um estudo inicial verificando o fenômeno denominado cifra negra, que representa
o número de crimes que são efetivamente praticados e que não aparecem nas
estatísticas oficiais, o que demonstra que apesar de todos nós já termos
praticado algum crimes na vida (ameaça, crime contra a honra, apropriação
indébita de um cd ou livro) observa-se que apenas uma pequena parcela dos
delitos serão investigados e levarão a um processo judicial que repercute em
uma condenação criminal. Com isto, o risco de ser etiquetado, ou seja,
“aparecer no claro das estatísticas”, não depende da conduta, mas da situação
do indivíduo na pirâmide social. Por isso o sistema penal é seletivo, pois
funciona segundo os estereótipos do criminoso, os quais são confirmados pelo
próprio sistema.
Assim,
nos últimos anos do Século XX houve o início de um novo pensamento de não
correção ao controle do crime, mas uma nova criminologia pautada em novas
filosofias da pena, centrada nos combates dos riscos da modernidade, analisando
a vítima e na defesa da sociedade em detrimento do criminoso. Esta é a nova
criminalidade: a do “outro”[2],
qual transforma um criminoso em demônio e venera as intervenções preventivas,
aumentando o poder punitivo do Estado, baseado em um ambiente de dramatização
midiática dos medos populares. O criminoso não é mais uma pessoa normal,
desajustada, vulnerável e propensa ao desvio. Ao contrário, o “outro” é fonte
de perigo, o qual necessita ser neutralizado, uma vez que é visto como fonte
imediata de perigos e incertezas[3].
As ideias
de Garland aproximam-se dos pensamentos de Jock Young, qual também entende que
a política criminal foi afetada pela modernidade. Com base nestes pensamentos,
YOUNG analisa que a existência de uma transição do período “pós guerra” para o período
de crise iniciado por volta de 1960, se constitui no movimento da modernidade,
cujo sistema passou a separar e excluir, em uma política de criação de
estereótipos criminosos[4].
O mundo
atual, na lição de YOUNG, configura-se como um mundo no qual as forças de
mercado transformaram as esferas de produção e consumo, questionando as noções
de certeza material e valores incontestes, substituindo-as por um mundo de
riscos e incertezas, dotado de pluralidade e de uma precariedade econômica e
ontológica. Todavia, a transição à modernidade recente pode ser vista como um
movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente.
Ou seja, da assimilação para a exclusão[5].
Dessarte,
dos ensinamentos de YOUNG e GARLAND, pode-se afirmar que a modernidade recente
elimina a política de bem estar, iniciando uma sociedade individualizada, onde,
qualquer possível privação ao individualismo é uma causa potencializadora da
criminalidade mais conflitiva e cruel[6].
Esta nova
idéia de realidade, criada através das políticas neoliberais, acabam por
dividir as pessoas em dois grupos, ou seja, os que estão dentro da nova ordem e
os que estão fora da nova ordem, cabendo aos meios de comunicação reproduzir
esta divisão como sendo os “bons” e os “maus”, os “amigos” e os “inimigos”.
Zaffaroni
e Pierangeli[7]
ensinam que esta nova realidade faz com que o Estado, no exercício de seu jus
puniendi, necessite encontrar um lugar para colocar aqueles que estiverem
fora da nova ordem, ou seja, onde colocar os “inimigos”, utilizando-se para tal
o Direito Penal, qual deveria ser utilizado apenas recriminar condutas, para
também recriminar características dos infratores, apenas com a idéia
simbólica de “combater os medos” da sociedade. Esta característica é o que a
Criminologia Crítica chama de rotulação, etiquetamento, criação de estereótipo
do criminoso.
Os meios
de comunicação, na função de difundir essa divisão, utiliza de forma indevida
da imagem dos denominados “inimigos”, criando em todo dos fatos verdadeiros
espetáculos, aumentando ainda mais a reprovação social, rotulando os acusados e
os estigmatizando para sempre perante a sociedade. É o que chamamos de
utilização dos meios de comunicação para a promoção da violência simbólica.
Bourdieu[8],
expõe a violência simbólica como aquela “violência que se exerce com a
cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com a frequência dos que a
exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou
sofrê-la”.Este processo de rotulação dos indivíduos pelos meios de comunicação
é colocada como uma das manifestações mais cruéis da violência simbólica.
Os termos
“estigma”, “etiquetamento”, “estereótipos criminosos”, constituem a chamada
teoria do etiquetamento (ou labelling approach). A teoria do
etiquetamento possui como tese central, conforme Andrade[9]
que:
(…) o desvio e a criminalidade não são uma
qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à
reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados
sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de
processos formais e informais de definição e seleção.
Esta
teoria, também pode ser chamada de criminologia da reação social. Segundo
Becker[10],
a tese da criminologia da reação social entende que:
(…) os grupos sociais produzem o desvio ao criar
regras cuja a infração constitui o desvio, ao aplicar estas regras a pessoas
particulares e a classificá-las como estranha. Deste ponto de vista, o desvio
não é uma qualidade do ato que a pessoa realiza, mas sim uma consequência de
que outros apliquem regras e sanções a um transgressor. O desviante é alguém a
quem foi aplicado este rótulo com êxito; o comportamento desviante é a conduta
que a gente rotula desse modo.
A criação
destes rótulos, ou seja, dos estereótipos criminosos permitem a prática não oficial
de extermínio e exclusão de pessoas. Cecília Coimbra[11]
comentando algumas pesquisas realizadas no Rio de Janeiro na década de noventa,
relatou como resultado encontrado o perfil do criminoso na guerra contra o
tráfico, sendo “homem pobre, preto ou pardo, entre 18 e 24 anos, morador de
periferia, que não chegou a terminar o primário e é morto em logradouro
público. É sem dúvida o ‘perfil do perigoso’ (…)”.
Partindo-se
desse pressupostos, se cria a idéia de que o traficante, o bandido, são as
pessoas encontradas nas favelas, se fazendo necessário políticas severas de
combate contra os moradores desta localidade. Se autoriza portando contra estes
moradores quase que uma prática de “vingança privada”, colocando-os a vindicta
da sociedade.
Todavia,
opondo-se ao extremo a essa idéia, quanto aos traficantes, bandidos encontrados
na classe média, classe média alta e classe alta, estes mesmos meios que
colocam os moradores das favelas em situação de exclusão, defendem que os
jovens mais ricos foram desvirtuados em decorrência dos meios que acabaram
conhecendo, necessitando de outras medidas, tais quais, educação e prevenção.
Ou seja, aos pobres a exclusão, aos ricos a educação.
Natalino[12],
transcreve uma das reportagens transmitida no Jornal Nacional da Rede Globo de
Televisão no dia 13 de maio de 2005, onde a reportagem mostra o seguinte
diálogo:
REPÓRTER: Foi no centro acadêmico dessa
universidade que a polícia paulista encontrou cápsulas, comercializadas por um
estudante de odontologia. Essa foi a primeira apreensão da nova droga no
Brasil. As cápsulas do medo, ou do vento, surgiram nas festas do último verão
europeu. A chegada agora a São Paulo é uma amostra do avanço das drogas
sintéticas no mercado brasileiro. Drogas que só nos últimos seis meses levaram
146 universitários para a cadeia.
DIRETOR DA DELEGACIA DE ENTORPECENTES DE SÃO PAULO:
O traficante entre 18 e 25 anos, sempre da classe média, média alta e da classe
alta. Pessoas que aparentemente tem uma estrutura econômica por trás, através
de sua família, e se envolve no tráfico de drogas.
REPÓRTER: Policiais estão infiltrados em
danceterias, raves e universidades. As investigações indicam que vêm da Europa,
principalmente da Holanda, as drogas produzidas em laboratório e que são hoje
um grande desafio para os educadores.
PSIQUIATRA DA USP: A única forma que nós temos para
combater esse problema é a prevenção. É a educação. Nós estamos formando
líderes no nosso país que nesse momento são grandes consumidores de drogas.
Observe-se
que existe uma distinção entre os que devem ser eliminados, excluídos da
sociedade, e aqueles que merecem uma solução pacífica, com estudo e medidas de
prevenção. As políticas repressivas acabam por lançar na sociedade que a culpa
da criminalidade é do pobre por sua condição, por não ter condições de educar
adequadamente seus filhos, por não conseguir afastá-los das drogas, por não ter
um emprego digno e por não auferir renda.
Moretzsohn[13]
chama esta prática de discurso higienista “(…) que expressam a naturalização
dos conflitos sociais, simplificados a partir de estereótipos (‘bandido’ versus
‘cidadãos do bem’) que reproduzem o senso comum a respeito e deixam ilesa a
estrutura radicalmente segregadora e violenta da própria sociedade que reproduz
o crime e a exclusão”.
Desta
forma, através da estigmatização do criminoso, se legitima o sistema repressivo
a agir de forma brutal, muitas vezes até com a morte de pessoas inocentes,
sendo justificadas estas mortes pela legítima defesa ou pela ausência de valor
dessa vida, o que afronta de todos os modos os direitos e garantias
fundamentais dos seres humanos previstos constitucionalmente em nosso
ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE,
Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia
no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
ANDRADE,
Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da
violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2003.
BAYER,
Diego Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones
sobre Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires : Editorial Derecho
Latino, 2012, v.8, p. 459-474.
BECKER,
Howard S.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Ed.
Zahar. 2008.
BOURDIEU,
Pierre. Sobre a televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CASTRO,
Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed.
Forense, 1983.
GARLAND,
David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
MORETZSOHN,
Sylvia. Imprensa e criminologia – o papel do jornalismo nas politicas de
exclusão social. Disponível em
http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf. Acesso
em 13 ago. 2012.
NATALINO,
Marco Antonio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência:
criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007.
YOUNG,
Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença
na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. Vol.1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
CITAÇÕES
[2] GARLAND, David. A cultura do
controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de
André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 285.
[3] Ibidem, p. 285, Cuida-se
de uma nova criminologia que se vale das imagens, arquétipos e ansiedades, e
não, de análises cuidadosas e de descobertas científicas. Em sua deliberada
intenção de ecoar os receios públicos e as pautas midiáticas, e com seu foco nas
ameaças mais preocupantes, ela é, na verdade, um discurso politizado do
inconsciente coletivo, muito embora reclame para si a virtude de ser realista e
consensual, se cotejada com as teorias acadêmicas. Em suas figuras de linguagem
e invocações retóricas típicas, esse discurso político se baseia na
criminologia arcaica do tipo criminoso, do Outro.
[4] Apud BAYER, Diego
Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones sobre
Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires : Editorial Derecho Latino,
2012, v.8, p. 459-474. “Conforme Mello (1998), ao noticiarem o fato, os meios
de comunicação não se limitam a informar. Estes tomam partido, julgam e
condenam, ampliando os estigmas, sem dar voz à parte contrária. Os termos
“estigma”, “etiquetamento”, “estereótipos criminosos”, constituem a chamada
teoria do etiquetamento (ou labelling approach). A teoria do etiquetamento
possui como tese central, conforme Andrade (2003, p.41) que: “(…) o desvio e a
criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica
preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída
a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social,
isto é, de processos formais e informais de definição e seleção””.
[5] YOUNG, Jock. A sociedade
excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade
recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 15-23.
[6] Ibidem, p. 36. Para
YOUNG, “a contribuição da precariedade econômica e da insegurança ontológica é
uma mistura extremamente inflamável em termos de respostas punitivas à
criminalidade e da possibilidade de criar bodes expiatórios. Nós já vimos, na
discussão de Luttwark sobre o impacto provável da precariedade econômica
isoladamente, que elas opõem sutilmente os que estão no mercado de trabalho aos
que estão transparentemente fora dele. A insegurança ontológica acrescenta a
esta situação ação explosiva a necessidade de reelaborar as definições menos
tolerantes ao desvio e de reafirmar as virtudes do grupo constituído”.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl.
PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. Vol.1.
6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.64.
[8] BOURDIEU, Pierre. Sobre a
televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997. p. 22.
[9] ANDRADE, Vera Regina Pereira de.
Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da
globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 41.
[10] Apud CASTRO, Lola
Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1983. p.99.
[11] Apud ANDRADE, Fábio
Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no
Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.167.
[12] NATALINO, Marco Antonio
Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta
e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007. p.121-122
[13] MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa
e criminologia – o papel do jornalismo nas politicas de exclusão social.
Disponível em
http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf. Acesso
em 13 ago. 2012. p. 19.
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