quinta-feira, 7 de julho de 2016

Teoria do etiquetamento: a criação de esteriótipos e a exclusão social dos tipos



Assistindo o quadro “Vai fazer o que” do programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão na noite de hoje (25/08/2013), onde colocaram 3 pessoas diferentes serrando uma corrente que prendia uma bicicleta a um poste, logo me veio em mente a teoria do etiquetamento, muito desenvolvida na área da Criminologia. Desta forma, aproveito para compartilhar com vocês um pequeno artigo escrito por mim e por meus colegas de Doutorado Cristiano Lázaro Fiuza Figueiredo e Caio Mateus Caires Rangel para a disciplina Direito e Multiculturalismo do excelente professor Dr. José Luiz Quadros de Magalhães.

Por Diego Augusto Bayer, Cristiano Lázaro Fiuza Figueiredo e Caio Mateus Caires Rangel

A teoria do etiquetamento, também conhecida como “labelling aprouch”, bem defendida por Becker em seu livro “Outsiders”[1], é enquadrada como a “desviação”, ou seja, uma qualidade atribuída por processos de interação altamente seletivos e discriminatórios. Tem esta teoria como objeto os processos de criminalização, ou seja, os critérios utilizados pelo sistema penal no exercício do controle social para definir o desviado como tal.


Realiza-se, um estudo inicial verificando o fenômeno denominado cifra negra, que representa o número de crimes que são efetivamente praticados e que não aparecem nas estatísticas oficiais, o que demonstra que apesar de todos nós já termos praticado algum crimes na vida (ameaça, crime contra a honra, apropriação indébita de um cd ou livro) observa-se que apenas uma pequena parcela dos delitos serão investigados e levarão a um processo judicial que repercute em uma condenação criminal. Com isto, o risco de ser etiquetado, ou seja, “aparecer no claro das estatísticas”, não depende da conduta, mas da situação do indivíduo na pirâmide social. Por isso o sistema penal é seletivo, pois funciona segundo os estereótipos do criminoso, os quais são confirmados pelo próprio sistema.

Assim, nos últimos anos do Século XX houve o início de um novo pensamento de não correção ao controle do crime, mas uma nova criminologia pautada em novas filosofias da pena, centrada nos combates dos riscos da modernidade, analisando a vítima e na defesa da sociedade em detrimento do criminoso. Esta é a nova criminalidade: a do “outro”[2], qual transforma um criminoso em demônio e venera as intervenções preventivas, aumentando o poder punitivo do Estado, baseado em um ambiente de dramatização midiática dos medos populares. O criminoso não é mais uma pessoa normal, desajustada, vulnerável e propensa ao desvio. Ao contrário, o “outro” é fonte de perigo, o qual necessita ser neutralizado, uma vez que é visto como fonte imediata de perigos e incertezas[3].

As ideias de Garland aproximam-se dos pensamentos de Jock Young, qual também entende que a política criminal foi afetada pela modernidade. Com base nestes pensamentos, YOUNG analisa que a existência de uma transição do período “pós guerra” para o período de crise iniciado por volta de 1960, se constitui no movimento da modernidade, cujo sistema passou a separar e excluir, em uma política de criação de estereótipos criminosos[4].

O mundo atual, na lição de YOUNG, configura-se como um mundo no qual as forças de mercado transformaram as esferas de produção e consumo, questionando as noções de certeza material e valores incontestes, substituindo-as por um mundo de riscos e incertezas, dotado de pluralidade e de uma precariedade econômica e ontológica. Todavia, a transição à modernidade recente pode ser vista como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente. Ou seja, da assimilação para a exclusão[5].

Dessarte, dos ensinamentos de YOUNG e GARLAND, pode-se afirmar que a modernidade recente elimina a política de bem estar, iniciando uma sociedade individualizada, onde, qualquer possível privação ao individualismo é uma causa potencializadora da criminalidade mais conflitiva e cruel[6].

Esta nova idéia de realidade, criada através das políticas neoliberais, acabam por dividir as pessoas em dois grupos, ou seja, os que estão dentro da nova ordem e os que estão fora da nova ordem, cabendo aos meios de comunicação reproduzir esta divisão como sendo os “bons” e os “maus”, os “amigos” e os “inimigos”.

Zaffaroni e Pierangeli[7] ensinam que esta nova realidade faz com que o Estado, no exercício de seu jus puniendi, necessite encontrar um lugar para colocar aqueles que estiverem fora da nova ordem, ou seja, onde colocar os “inimigos”, utilizando-se para tal o Direito Penal, qual deveria ser utilizado apenas recriminar condutas, para também  recriminar características dos infratores, apenas com a idéia simbólica de “combater os medos” da sociedade. Esta característica é o que a Criminologia Crítica chama de rotulação, etiquetamento, criação de estereótipo do criminoso.

Os meios de comunicação, na função de difundir essa divisão, utiliza de forma indevida da imagem dos denominados “inimigos”, criando em todo dos fatos verdadeiros espetáculos, aumentando ainda mais a reprovação social, rotulando os acusados e os estigmatizando para sempre perante a sociedade. É o que chamamos de utilização dos meios de comunicação para a promoção da violência simbólica.

Bourdieu[8], expõe a violência simbólica como aquela “violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com a frequência dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou sofrê-la”.Este processo de rotulação dos indivíduos pelos meios de comunicação é colocada como uma das manifestações mais cruéis da violência simbólica.

Os termos “estigma”, “etiquetamento”, “estereótipos criminosos”, constituem a chamada teoria do etiquetamento (ou labelling approach). A teoria do etiquetamento possui como tese central, conforme Andrade[9] que:

(…) o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção.

Esta teoria, também pode ser chamada de criminologia da reação social. Segundo Becker[10], a tese da criminologia da reação social entende que:

(…) os grupos sociais produzem o desvio ao criar regras cuja a infração constitui o desvio, ao aplicar estas regras a pessoas particulares e a classificá-las como estranha. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa realiza, mas sim uma consequência de que outros apliquem regras e sanções a um transgressor. O desviante é alguém a quem foi aplicado este rótulo com êxito; o comportamento desviante é a conduta que a gente rotula desse modo.

A criação destes rótulos, ou seja, dos estereótipos criminosos permitem a prática não oficial de extermínio e exclusão de pessoas. Cecília Coimbra[11] comentando algumas pesquisas realizadas no Rio de Janeiro na década de noventa, relatou como resultado encontrado o perfil do criminoso na guerra contra o tráfico, sendo “homem pobre, preto ou pardo, entre 18 e 24 anos, morador de periferia, que não chegou a terminar o primário e é morto em logradouro público. É sem dúvida o ‘perfil do perigoso’ (…)”.

Partindo-se desse pressupostos, se cria a idéia de que o traficante, o bandido, são as pessoas encontradas nas favelas, se fazendo necessário políticas severas de combate contra os moradores desta localidade. Se autoriza portando contra estes moradores quase que uma prática de “vingança privada”, colocando-os a vindicta da sociedade.

Todavia, opondo-se ao extremo a essa idéia, quanto aos traficantes, bandidos encontrados na classe média, classe média alta e classe alta, estes mesmos meios que colocam os moradores das favelas em situação de exclusão, defendem que os jovens mais ricos foram desvirtuados em decorrência dos meios que acabaram conhecendo, necessitando de outras medidas, tais quais, educação e prevenção. Ou seja, aos pobres a exclusão, aos ricos a educação.

Natalino[12], transcreve uma das reportagens transmitida no Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão no dia 13 de maio de 2005, onde a reportagem mostra o seguinte diálogo:

REPÓRTER: Foi no centro acadêmico dessa universidade que a polícia paulista encontrou cápsulas, comercializadas por um estudante de odontologia. Essa foi a primeira apreensão da nova droga no Brasil. As cápsulas do medo, ou do vento, surgiram nas festas do último verão europeu. A chegada agora a São Paulo é uma amostra do avanço das drogas sintéticas no mercado brasileiro. Drogas que só nos últimos seis meses levaram 146 universitários para a cadeia.
DIRETOR DA DELEGACIA DE ENTORPECENTES DE SÃO PAULO: O traficante entre 18 e 25 anos, sempre da classe média, média alta e da classe alta. Pessoas que aparentemente tem uma estrutura econômica por trás, através de sua família, e se envolve no tráfico de drogas.
REPÓRTER: Policiais estão infiltrados em danceterias, raves e universidades. As investigações indicam que vêm da Europa, principalmente da Holanda, as drogas produzidas em laboratório e que são hoje um grande desafio para os educadores.
PSIQUIATRA DA USP: A única forma que nós temos para combater esse problema é a prevenção. É a educação. Nós estamos formando líderes no nosso país que nesse momento são grandes consumidores de drogas.

Observe-se que existe uma distinção entre os que devem ser eliminados, excluídos da sociedade, e aqueles que merecem uma solução pacífica, com estudo e medidas de prevenção. As políticas repressivas acabam por lançar na sociedade que a culpa da criminalidade é do pobre por sua condição, por não ter condições de educar adequadamente seus filhos, por não conseguir afastá-los das drogas, por não ter um emprego digno e por não auferir renda.

Moretzsohn[13] chama esta prática de discurso higienista “(…) que expressam a naturalização dos conflitos sociais, simplificados a partir de estereótipos (‘bandido’ versus ‘cidadãos do bem’) que reproduzem o senso comum a respeito e deixam ilesa a estrutura radicalmente segregadora e violenta da própria sociedade que reproduz o crime e a exclusão”.

Desta forma, através da estigmatização do criminoso, se legitima o sistema repressivo a agir de forma brutal, muitas vezes até com a morte de pessoas inocentes, sendo justificadas estas mortes pela legítima defesa ou pela ausência de valor dessa vida, o que afronta de todos os modos os direitos e garantias fundamentais dos seres humanos previstos constitucionalmente em nosso ordenamento jurídico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.
BAYER, Diego Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires : Editorial Derecho Latino, 2012, v.8, p. 459-474.
BECKER, Howard S.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Ed. Zahar. 2008.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983.
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e criminologia – o papel do jornalismo nas politicas de exclusão social. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf. Acesso em 13 ago. 2012.
NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. Vol.1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.


CITAÇÕES

[1] BECKER, Howard S.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Ed. Zahar. 2008.
[2] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 285.
[3] Ibidem, p. 285, Cuida-se de uma nova criminologia que se vale das imagens, arquétipos e ansiedades, e não, de análises cuidadosas e de descobertas científicas. Em sua deliberada intenção de ecoar os receios públicos e as pautas midiáticas, e com seu foco nas ameaças mais preocupantes, ela é, na verdade, um discurso politizado do inconsciente coletivo, muito embora reclame para si a virtude de ser realista e consensual, se cotejada com as teorias acadêmicas. Em suas figuras de linguagem e invocações retóricas típicas, esse discurso político se baseia na criminologia arcaica do tipo criminoso, do Outro.
[4] Apud BAYER, Diego Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires : Editorial Derecho Latino, 2012, v.8, p. 459-474. “Conforme Mello (1998), ao noticiarem o fato, os meios de comunicação não se limitam a informar. Estes tomam partido, julgam e condenam, ampliando os estigmas, sem dar voz à parte contrária. Os termos “estigma”, “etiquetamento”, “estereótipos criminosos”, constituem a chamada teoria do etiquetamento (ou labelling approach). A teoria do etiquetamento possui como tese central, conforme Andrade (2003, p.41) que: “(…) o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção””.
[5] YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 15-23.
[6] Ibidem, p. 36. Para YOUNG, “a contribuição da precariedade econômica e da insegurança ontológica é uma mistura extremamente inflamável em termos de respostas punitivas à criminalidade e da possibilidade de criar bodes expiatórios. Nós já vimos, na discussão de Luttwark sobre o impacto provável da precariedade econômica isoladamente, que elas opõem sutilmente os que estão no mercado de trabalho aos que estão transparentemente fora dele. A insegurança ontológica acrescenta a esta situação ação explosiva a necessidade de reelaborar as definições menos tolerantes ao desvio e de reafirmar as virtudes do grupo constituído”.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. Vol.1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.64.
[8] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 22.
[9] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 41.
[10]  Apud CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983. p.99.
[11] Apud ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.167.
[12] NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007. p.121-122
[13] MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e criminologia – o papel do jornalismo nas politicas de exclusão social. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf. Acesso em 13 ago. 2012. p. 19.

Nenhum comentário:

Postar um comentário