Culpabilidade e
Responsabilidade
Além
de ser pré-condição para a pena, o princípio da culpabilidade serve também para
regular sua aplicação. Diz Claus Roxin[1]:
“O princípio de que a pena não pode
ultrapassar, nem em sua gravidade, nem em sua duração, o grau de culpabilidade,
ao contrário do que sucede com o princípio retributivo, não tem origem
metafísica, mas é o produto do liberalismo ilustrado e serve para limitar o
poder de intervenção estatal. Dele é que derivam uma série consequências que se
contam entre as mais eficazes garantias do Estado de Direito e que por isso
mesmo não devem ser abandonadas em nenhum caso. Assim, por exemplo, o princípio
formulado por Feuerbach, «nullum crimen,
nulla poena sine lege», acolhido na legislação penal da maioria dos Estados
civilizados, está estreitamente vinculado a função limitadora da pena que tem o
princípio da culpabilidade: quem antes de cometer um ato não pode ler na lei
escrita que esse ato é castigado com uma pena, não pode tampouco ter conhecido
a proibição e, em consequência, não tem, ainda que a infrinja, por que
considerar-se culpado. O princípio da culpabilidade exige, pois, que se
determine claramente o âmbito da
tipicidade, que as leis penais não tenham efeitos retroativos e que se exclua qualquer
tipo de analogia em desfavor do réu; vinculando, deste modo, o poder estatal a
lex scripta e impedindo a a administração de justiça arbitrária. O princípio da
culpabilidade serve também para determinar o grau máximo admissível de pena
quando se lesiona de modo inequívoco uma lei escrita.”
Assim,
para que haja uma pena, sustenta Roxin, é preciso que o Estado considere o
condenado não apenas culpado, mas também “responsável”, ou seja, que acredite
que a aplicação de uma pena seja necessária para fins de prevenção do
crime.
Exemplificando:
no caso do furto de uma caneta “bic” (ou na venda de uns poucos DVDs “piratas”
realizado por um desempregado), pode haver culpa, mas não há necessidade de
pena, pois tal ato não ameaça a ordem jurídica, não guarda proporção com a pena
de prisão prevista ao tipo, e sua não punição não gerará uma sensação de
impunidade na população. Portanto, o juiz de Roxin depois de resolvida
afirmativamente a questão dogmática sobre se o réu é culpado, deverá, formular
a questão de sua eventual responsabilidade: “Dentro do limite imposto pela
culpabilidade, é necessária uma pena? Que
forma e extensão deveria ter essa pena para que atenda a finalidades
político-criminais de evitação do crime e de confiança no sistema penal?”
A
tese de Claus Roxin pretende, então, que a função preventiva da pena seja
sempre observada. A pena deve estar pois atrelada tanto à culpabilidade quanto
a necessidade de torná-la útil para fins de prevenção. Nulla poena sine necessitate, axioma que, nos dizeres de Ferrajoli[2], em conjunto com o
princípio do Nulla lex poenalis sine
necessitate, exige economia na lógica penal. A primeira máxima dirigida ao
juiz, limitando a pena à mínima necessária, e a segunda, dirigida ao legislador,
atrelando a criação de leis penais à efetiva necessidade social.
Culpabilidade e
vulnerabilidade
Para
o jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni, o princípio da culpabilidade daria
o limite máximo da pena. Mas, assim como Roxin, não crê que ele por si só possa
orientar a aplicação da pena em concreto, limitando como é requerido a
violência ligada ao poder de punir. È preciso um complemento à culpabilidade.
Mas ao contrário do criterio da necessidade do jurista alemão, Zaffaroni,
pensando a partir da “margem”, propõe o princípio da vulnerabilidade, como
norte político de aplicação da pena.
A
vulnerabilidade enquanto critério limitador da pena surge do reconhecimento do
caráter extremamente seletivo das pessoas que são postas em frente ao juiz para
receberem a sanção penal. É fato que quanto mais vulnerável for a pessoa –
quanto mais ela corresponder ao estereótipo do inimigo da paz social (pobre,
negro, favelado, autor de crimes toscos, de pouca elaboração etc.), mais será
selecionado pelas agências legislativas, policiais, imprensa, opinião pública
etc., para receber uma pena. Assim, os juízes quase sempre atendem os mesmos
“clientes”, fazendo com que, por mais que o julgador procure ser justo com os
que chegam diante dele, não pode esquecer de questionar-se do porquê só estes
“clientes” chegam e por que razão chegam. Chegam, adverte o Ministro da Suprema
Corte Argentina, por sua
vulnerabilidade, mais do que por seus crimes – pensar diferente, seria sustentar
que as classes que não costumam figurar como rés nos processos penais são
incapazes de cometerem crimes.
Não
se nega, com o princípio da vulnerabilidade, que haja crimes e culpas nos
estratos mais miseráveis da população. Mas se reconhece que a seleção quase que
unicamente desses para o processo penal ocorre, em parte, por questões sociais
ligadas ao estereótipo negativo que carregam e, só em outra parte, pelo esforço
pessoal de vulnerabilidade que empreenderam. Zaffaroni chama de “esforço
pessoal de vulnerabilidade” a decisão de uma pessoa de afrontar, mediante
práticas ilícitas, o sistema punitivo. E é óbvio que quanto mais negativo for o
estereótipo do sujeito menos esforço ele precisará fazer para irritar o sistema
penal e receber uma pena.
Em
contrapartida, quanto menos o sujeito é vulnerável, quanto mais consegue
esconder suas práticas criminosas em discursos legitimantes, menos estará
prestes a receber uma pena. Como brinca o mestre portenho: aquele que urina em
um rio está mais sujeito a responder por um crime ambiental do que qualquer
empresário que descarregue milhares de litros de poluentes no mesmo rio, em
desacordo com as normas jurídico-penais. O que levou a polícia a levar o
primeiro à delegacia e a partir daí começar um procedimento penal? O que levou
as autoridades a tratarem a situação do empresário como um problema econômico e
dar-lhe mil e uma chances de mudar sua conduta antes de qualquer procedimento
penal? A conduta? O dano? A culpa? Não: a diferença de vulnerabilidade.
Se
assim é, para conservar alguma justiça, a pena deve ser atenuada de acordo com
o grau de vulnerabilidade do sujeito: ou seja, pelo grau de facilidade com que
o sistema penal tem para selecioná-lo (não se pode apenar a vulnerabilidade de
estereótipo) e limitada pela culpabilidade naquilo que consistiu seu esforço
por ser selecionado, ou seja, pelo ilícito praticado.
Assim,
se se quiser reduzir o âmbito de arbitrariedade sobre os clientes que lhes são
entregues prioritariamente, o juiz deve levar a questão dos diferentes graus de
vulnerabilidade em consideração. Diz Zaffaroni[3]:
“A
quantificação penal reconheceria como limite máximo a culpabilidade do ato,
porém não explicitamos com isso o corretivo fático que permitiria estabelecer
penas por debaixo de esse limite. A nosso juízo, isto pode praticar-se a partir
da vulnerabilidade que a pessoa oferece ao exercício do poder punitivo. É um
dado da realidade que quanto maior é o esforço que uma pessoa há feito para
fazer-se vulnerável ao exercício do poder punitivo, menor será o espaço da
agência judicial para baixar a pena do limite assinalado pela culpabilidade e
vice-versa.
Deste modo, a quantificação penal consistente
sempre na tarefa de impor a pena menos violenta possível, colocaria um limite
máximo (magnitude «0») que estaria dado pela culpabilidade do ato. O espaço de
poder da agência judicial para quantificar a pena por debaixo desse limite
(magnitude «-1», «-2», etc.) dependerá sempre do esforço que haja feito a
pessoa por alcançar a situação de vulnerabilidade em que o há surpreendido o poder
punitivo, esforço de que formará parte a magnitude do conteúdo do injusto,
entre outros dados (caracteres pessoais que correspondam ao estereótipo, por
exemplo).
Uma pessoa cujas características pessoais
coincidam com as do estereótipo criminal, basta com que incorra em um injusto
leve para que seja vulnerável. Por regra geral, a vulnerabilidade alcançada com
pouco esforço [como no caso do pequeno traficante] concede à agência judicial
um espaço de poder muito considerável para impor penas mínimas ou muito leves,
sem que as agências restantes do poder punitivo tenham argumentos ou elementos
para criticá-la ou desprestigiá-la. Inversamente, ante a esforços muito grandes
[como no caso de um poderoso político que participe de uma rede de pedofilia],
a agência judicial carece de poder para proceder de igual forma.
Partindo do principio de que a pena mais leve
é a menos violenta, a agência judicial tem poder no primeiro caso para baixar a
magnitudes -1, -2 etc., mas não pode fazê-lo no segundo, sob pena de sofrer
desprestígio, críticas e perda de poder, caso em que não lhe restará outro meio
que manter-se na magnitude “0” (indicada pela culpabilidade do ato).”
Se
Roxin, falando a partir da Alemanha, oferece soluções funcionais para o sistema
penal de uma sociedade menos desigual, Zaffaroni, que fala pela América Latina,
precisa ir além e lembrar como as desigualdades sociais aviltantes de nossa
região se transformam em políticas penais persecutórias aos mais vulneráveis.
Por isso seu critério de correção da culpabilidade pode parecer mais
“militante”, e de fato é, em relação ao Claus Roxin. O que só serve para
demonstrar que o bom penalista é aquele que faz as categorias tradicionais do
Direito penal prestarem contas à realidade concreta em que estão inseridas. Ser
culpado em Berlim é uma coisa, ser culpado em Buenos Aires, Brasília ou
Caracas, é outra. E cada um desses autores disso.
Culpabilidade e algo
mais
Tomando
por base esses dois autores, Roxin e Zaffaroni, que figuram entre os mais
respeitados penalistas contemporâneos, podem sintetizar que:
1)
A culpabilidade pelo fato cometido dará a extensão máxima possível da pena,
pois agir de outra maneira seria desrespeitar a Constituição e a tradição penal
liberal;
2)
A pena não pode ser aplicada quando, apesar de haver culpa, não for necessária,
nem aplicada em desconformidade com finalidades preventivas (Roxin).
3)
A pena não pode ser aplicada sem levar em consideração os motivos que levam
alguns a chegarem com mais facilidade ao sistema penal do que outros. Deve o
juiz ter isso em mente para evitar punir a vulnerabilidade do sujeito para além
de sua culpabilidade (Zaffaroni).
Escrito
por Sandro C. Sell. Artigo disponível em
[2] FERRAJOLI,
Luigi. Derecho y razón: Teoría del garantismo
penal. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1995.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Hacia um realismo marginal. Caracas: ed.
Monte Avila Latinoamericana, 1992. P.
110.
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