terça-feira, 17 de março de 2015

Se ele diz que aqueles são inimigos, por que vou discordar?


Por Diego Bayer e Camila Zick

Um Retrato da obediência hierárquica baseado no experimento de Milgram

O dilema inerente na obediência à autoridade é algo antigo, porém, constantemente suscitado ao longo da história, além do mais, rotineiramente encontrado nos mais diversos povos e culturas. Algo que muitas vezes é visto como uma virtude, revela-se intrínseco no ser humano a ponto de eclodir nas ações mais atrozes. Por outro lado, a obediência não deixa de ser elemento básico da estrutura da vida em sociedade.

O conceito do que seria a obediência hierárquica não é um tema pacífico entre os penalistas, conquanto para alguns seria apenas uma justificação, para outros é uma circunstância atenuante e, há, ainda, aqueles que fazem jus aos dois caracteres.



Todavia, para que haja o fenômeno da obediência hierárquica é necessário que exista um vínculo de subordinação entre um superior hierárquico e um subordinado na esfera da organização pública, pois não se fala em hierarquia no setor privado.

Sob o prisma da Administração Pública, Costa (p. 2) explica que a obediência hierárquica é gerada através do dever de obediência do agente público, “em que este impõe ao servidor o acatamento às ordens legais de seus superiores e sua fiel execução. Tal dever resulta da subordinação hierárquica e assenta no princípio disciplinar que informa toda organização administrativa”.

Na Administração Pública Militar, a obediência hierárquica encontra amparo constitucional e infraconstitucional – na Constituição Federal o artigo 42 taxa: “os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios”, outrora o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar revela como base de sua organização a hierarquia e a disciplina, já em seu artigo 9º taxa que “a disciplina policial-militar é o exato cumprimento dos deveres, traduzindo-se na rigorosa observância e acatamento integral das leis, regulamentos, normas e ordens, por parte de todos e de cada integrante da Polícia Militar”.

Constata-se, por conseguinte, a importância dada ao dever de obediência aos militares, almejando a preservação da própria instituição, reflexo disso se dá nas legislações penal militar, instituindo crime punido com detenção e uma transgressão disciplinar de natureza grave àqueles que se recusam a obedecer.

O Experimento de Milgram

Caso você não conheça o experimento, recomendamos ver o vídeo.



Vê-se de maneira contundente que uma pessoa que repudia atos como roubar, assaltar ou até mesmo matar pode se encontrar, com relativa facilidade, cometendo qualquer uma dessas ações quando submetidos a ordens de uma autoridade. Essa submissão, quase que instantânea, fora palco dos estudos de Stanley Milgram na década de 60, um psicólogo norte-americano que se tornou conhecido por suas experiências no que se refere à obediência à autoridade.

Deste modo, a experiência consistia num ensaio onde três pessoas assumiam seus respectivos papéis – o aluno, o professor e o cientista. Onde, o cientista de prontidão recepcionava duas pessoas, sendo uma voluntária e a outra um ator – não obstante ressaltar que o voluntário não tinha conhecimento do intérprete, para a realização de um sorteio que definiria quem seria quem, o ator, por sua vez, sempre seria sorteado como aluno e o voluntário como professor – o foco da experiência. O ensaio era repassado aos voluntários como um estudo dos efeitos da punição no aprendizado.

Milgram (1983) ao descrever o que ocorrera, relata que o professor, após observar o aluno ser amarrado na cadeira e conectado aos eletrodos é levado à sala principal de testes onde se depara com um gerador de choques elétricos dispostos em uma faixa de choques de 15 a 450 volts juntamente com descrições indicando o nível de periculosidade do choque.

Por conseguinte, o professor aplicaria um teste de aprendizagem ao aluno que, ao acertar a questão passaria à próxima sucessivamente e, ao errar, o professor aplicaria um choque – que aumentaria gradativamente a intensidade de acordo com o número de erros cometidos. Contudo Milgram (p. 21, 1983) ressalta que “o ‘professor’ é realmente uma pessoa inocente que foi ao laboratório participar da experiência. O aluno, ou a vítima, é um ator, e na verdade não recebe choque algum”.
O interesse da experiência é verificar até onde a pessoa pode chegar obedecendo ordens e em que ponto a pessoa se recusará a continuar aplicando choques no aluno.

O conflito surge quando a pessoa que está recebendo choques começa a demonstrar que está sofrendo. Com 75 volts o “aluno” geme. Com 120 volts ele reclama verbalmente; com 150 pede para sair da experiência. Seus protestos prosseguem à medida que os choques aumentam de intensidade. Seus protestos tornam-se veementes e emocionais. Com 285 volts sua reação pode ser descrita apenas como um grito agonizante. (MILGRAM, p. 21, 1983).

Observa-se a partir desse prisma que, se por um lado tem-se o sofrimento do aluno pressionando o professor a parar, por outro lado há uma legítima autoridade instigando-o a continuar. Assim, cada vez em que o professor hesita em aplicar o choque, o cientista ordena para que ele prossiga, estimulando-o com frases encorajadoras – “a experiência requer que você continue” ou “você não tem outra escolha, deve continuar”.

Milgram (1983) em seus estudos constatou que aproximadamente 2/3 (dois terços) dos participantes se enquadraram como obedientes:

Esta talvez seja a mais importante lição de nosso estudo: as pessoas comuns, simplesmente cumprindo seus deveres, e sem qualquer hostilidade especial, podem-se tornar agentes de um terrível processo destrutivo. E mais ainda, mesmo quando os efeitos destrutivos do trabalho ficam bem claros, e pede-se a essas pessoas para realizarem coisas incompatíveis com os padrões fundamentais de moralidade, relativamente poucas pessoas têm condições de resistir à autoridade. Uma variedade de inibições para desobedecer à autoridade vem à tona e consegue que a pessoa continue em sua função. (MILGRAM, p. 23, 1983).

O resultado surpreendeu principalmente aos voluntários que, ao serem questionados anteriormente sobre a resistência à autoridade afirmaram que não haveria problemas quanto a desacatar uma ordem advinda de um superior, quando assim achassem conveniente.

Conquanto, há, logicamente, um abismo entre cumprir as ordens de um mero pesquisador e cumprir ordens de um oficial em meio a guerra. Porém, as relações entre um comandante e um comandado permanecessem, mesmo que em escalas e proporções diferentes.

Os Efeitos da Obediência

Em nome da obediência sucedeu-se uma série de feitos atrozes e cruéis que marcaram e ainda marcam o desenvolver da história. Guerras, conflitos, milícias e até mesmo a ação da polícia militar no que se diz respeito às manifestações que tumultuaram o Brasil entre os meses de junho e julho de 2013 se tornam palco do que da obediência pode se desencadear.

O extermínio dos judeus pelos nazistas é visto por Milgram (1983, p.20) como “o pior exemplo de atos imorais abomináveis executados por milhões de pessoas em nome da obediência” e, ilustrando o retrato, considerado por muitos de horror, Shirer (1962, p. 55) em sua obra delineia:

Todos aqueles principais trinta e tantos campos de concentração dos nazistas eram campos de morte. Neles morreram milhões de criaturas torturadas e famintas. […] A “Solução Final” da questão judaica significava o extermínio completo de todos os judeus da Europa. Ordenaram-me [Rudolf Hoess] em junho de 1941 que criasse, em Auschwitz, facilidades para o extermínio. […] Tínhamos dois médicos das S. S. em função, para examinarem os prisioneiros que para ali eram transportados. Desfilavam eles diante de um dos médicos que, ali mesmo, dava sua decisão. Os capacitados para o trabalho eram enviados para o acampamento; os demais seguiam imediatamente para o local de extermínio. As crianças eram invariàvelmente exterminadas por não poderem trabalhar devido à pouca idade.

Em busca de uma excludente de responsabilidade individual por obediência a ordens superiores, oficiais nazistas detentores de grande poder na hierarquia do Terceiro Reich, fizeram jus ao argumento de que apenas cumpriram ordens expressas de Führer – argumento esse rejeitado pelo Tribunal de Nuremberg. Silva (2010, p.25) em seu artigo ainda complementa que a utilização do mesmo argumento foi “utilizada por Adolf Eichmann junto à Corte Distrital de Jerusalém quando do seu julgamento na participação da ‘solução final dos judeus’”.

Além do episódio nazista, outro retrato que revela a astúcia da autoridade se deu na Guerra do Vietnã, onde soldados americanos rotineiramente incendiavam povoados, forçavam a evacuação de enfermos e idosos de suas terras, além de massacrar centenas de civis. Ademais, outro elemento adicional desencadeou a intensificação da obediência e facilitou a ação – o inimigo não era da mesma raça, os vietnamitas eram chamados vulgarmente de “amarelos”.

Stanley Milgram (1983) ao tentar explicar a ação dos soldados americanos revela que a área de treinamento militar é fisicamente apartada da sociedade para garantir a ausência de autoridades competentes. Os soldados eram recompensados de acordo com a obediência de cada um, almejando, por conseguinte, a extinção da individualidade egocentrismo. “O objetivo é a disciplina, e dar uma forma visível de submissão do indivíduo a uma forma organizacional, colunas e pelotões movem-se como um único homem, cada um deles correspondendo à autoridade do sargento treinador” (p. 199).

Desta forma, a possibilidade de desobediência não era vista com bons olhos por muitos dos soldados, nenhum deles gostaria de parecer um covarde, não americano ou inimigo de sua nação. Deste modo, a imagem que passou a ser construída em cima do soldado revelaram patriotismo, coragem, mesmo que, através da submissão.

Mas o que fez a sociedade ao ser publicada os estudos de Milgram? Desceram a pancadaria nas pesquisas, tentando fazer com que fossem desacreditadas e inclusive repudiavam as descobertas. Porque? Simplesmente porque não queriam estar convencidos de que toda a situação vivida, principalmente no Holocausto, poderia ser vivida novamente (BAUMAN, 1998, p. 179). Um choque de realidade que muitos não queriam acreditar.

Milgram estava certo e ainda está. Sugeriu e provou que a “desumanidade é uma questão de relacionamentos sociais. Na mesma proporção em que estas são racionalizadas e tecnicamente aperfeiçoadas, também o são a capacidade e a eficiência de produção social da desumanidade” (MILGRAM, 1983).

Verificou-se na experiência de Milgram que, quando envolve contato corporal direto, ou seja, o ‘professor’ tinha que pressionar a mão do ‘aluno’ em um prato que supostamente aplicaria o choque elétrico, somente 30% continuavam a obedecer o comando. Quando era manipulado por alavancas no painel de controle, subia para 40%. Quando era colocado uma parede entre o ‘professor’ e o ‘aluno’, sem visão, aumentava o índice para 62,5% (MILGRAM, 1983).

Ou seja, quando colocamos a “carapuça” do carrasco, para que este não veja a nossa face, ou não vimos o sofrimento da vítima, sobe o índice de obediência hierárquica, o que demonstra que a crueldade, a desumanidade se torna ainda maior quando não reconhecemos o “inimigo”.

Este afastamento, o não reconhecimento do próximo, está se tornando cada vez mais frequente na sociedade atual, uma vez que criamos determinados estereótipos, quase sempre dos setores de baixa renda, qual passam a ser deslegitimados do convívio em sociedade, sendo que a ideia de obediência auxilia na tarefa de eliminá-los, desconsiderando da ética e justificando a opressão punitiva.

Ou seja, o Holocausto não terminou, e sim, está presente em cada sociedade em particular, com a perda da consciência, o aumento do punitivismo social, o encarceramento na grande maioria das pessoas de baixa renda, a função de deslegitimar determinados estereótipos da sociedade, com frases como: “seria melhor se não existissem”, ou “bandido bom é bandido morto”, bem como, com o consequente extermínio destas pessoas, afinal, “se um pobre morrer, o que eu tenho a ver com isso”, não é?

Diego Augusto Bayer é doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Professor de Penal e Processo Penal na Católica de Santa Catarina. Organizador e um dos autores da obra Controvérsias Criminais: Estudos de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. (Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Eugenio Raúl Zaffaroni). Advogado Criminalista.

Camila Zick é acadêmica do 6º semestre do curso de Direito na Católica de Santa Catarina.


Referências
BAUMAN, Zygmunt. Holocausto e modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
COSTA, da H. Alexandre. A Obediência Hierárquica no Sistema Penal Militar. ACSMCE.
MILGRAM, Stanley. Obediência à Autoridade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
SILVA, Alexandre da P. L.. A Obediência Hierárquica como Causa de Exclusão da Culpabilidade no Direito Penal Brasileiro e no Direito Internacional Penal. Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco. 2009.

SHIRER, L. William. Ascensão e Queda do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

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