Por Salah H. Khaled Jr. e Diego Bayer
Em um local chamado Tangamandapio eles têm um sistema processual penal muito peculiar: o destino do acusado é decidido através de uma partida de “Mortal Kombat”, disputada em um console caseiro de videogame.
Poderia até soar como piada, mas a situação é verdadeiramente
alarmante. Nós que vivemos em um país civilizado nos espantamos com
práticas punitivas dessa ordem: afinal, nosso processo é estruturado em
torno da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, do in dubio pro reo, da ampla defesa, contraditório, paridade de armas e assim por diante.
Não há como não se chocar: enquanto nos somos adeptos do devido
processo legal, eles simplesmente entregam a decisão sobre a imposição
da pena a uma partida de videogame! Mas que absurdo!
Mas não pense que a coisa fica por aí. Esse é apenas o começo da brincadeira: lá em Tangamandapio
os controles bons sempre estão nas mãos do juiz e do acusador e os
personagens mais “fortes” sempre são reservados a eles: nada mais
correto, afinal, representam a “sociedade”, ou seja, os interesses dos
“homens de bem” em confronto com os “pseudodireitos individuais” do
acusado.
Muitos irão perguntar: mas e o defensor? Em Tangamandapio o
advogado sempre recebe um controle detonado, com a funcionalidade
inteiramente prejudicada. Um controle velho e surrado basta para o
defensor. Afinal, ele no máximo é um auxiliar, ou no pior dos casos, um
triste empecilho para a diversão alheia: seu verdadeiro sentido consiste
em apressar a condenação oferecendo a mínima resistência possível.
Em Tangamandapio o jogo é jogado para deleite do juiz e do
acusador. Eles são parceiros de todas as horas: o primeiro inclusive
costuma rotineiramente “suprir” a falta do segundo quando ele não se faz
presente. Não se espante. Nada mais natural: afinal estão irmanados
pelo propósito comum de combate ao mal.
Os dois colaboram ativamente e inclusive dividem os livros de
estratégias mais atualizados, com todos os macetes necessários para
triunfar sobre os adversários. Rotineiramente são vistos juntos após o
expediente recordando os casos mais célebres em que sua participação
conjunta foi decisiva para o resultado final. Sabemos que tudo isso soa
muito estranho para quem está acostumado com um juiz sistemicamente
imparcial. Mas cada povo tem seus costumes, ora bolas.
O
ritual que envolve o jogo é fascinante. Todos sabem que uma partida de
Mortal Kombat inicia com a escolha dos personagens. Mas ela não é
aleatória em Tangamandapio, ou verdadeiramente entregue para
escolha dos jogadores. Utiliza-se lá a regra de “um fica com o
personagem bom, ou seja, o mais forte” enquanto o outro sempre fica com o
“mais fraco”. Juiz e acusador se revezam com o mais forte, enquanto que
para o defensor sobra sempre o mais fraco. Nada mais justo: já estão
fazendo uma grande concessão permitindo que alguém jogue pelo acusado.
Como se já não bastasse o controle que não comanda ou que praticamente
não responde, o personagem mais fraco invariavelmente será reservado ao
defensor. Se o acusado tiver a infelicidade de ser enquadrado em um dos
quatro “pês”, ou seja, “o pardo, o preto, o pobre e a prostituta”, o
defensor provavelmente receberá um controle com pilhas gastas. Eis aí o
sentido por trás do jogo: a diversão durará alguns minutos até que ele
se torne um mero espectador. O acusado tem apenas a ilusão de
participação. Pode soar um tanto quanto hipócrita, mas os tangamandapienses tem certezas muito bem definidas quanto ao conteúdo e propósito do jogo. O resultado já está definido de antemão.
Desse modo, quem estiver com o controle bom nas mãos e com o
personagem mais poderoso – normalmente é Goro – sempre conseguirá
“vencer”: o jogo já começa com resultado predefinido e somente um
jogador com extraordinárias habilidades poderá compensar a diferença,
literalmente tendo que “provar sua inocência”. Proeza que por sinal
raramente acontece em Tangamandapio, particularmente para certas pessoas.
Lá em Tangamandapio o acusado já está devidamente etiquetado
antes que a partida sequer comece. E isso não tem relação alguma com
uma condição pessoal de predisposição ao crime, mas com um complexo
processo de interação social que literalmente inventa a figura do
criminoso e trabalha para confirmar no processo essa invenção: Mortal Kombat
não é nada mais que o elemento formal de um complexo processo de
sujeição criminal dos alvos eleitos pelo sistema penal daquele simpático
país.
Alvos? Mas como assim? Explicamos. O sistema de proibições e mandamentos penais de Tangamandapio é
muito extenso e abrangente. De modo algum se assemelha ao nosso sistema
de Direito Penal moderno, estruturado em torno da ideia de ultima ratio e reservado somente às lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes. Como se sabe, o programa criminalizante de Tangamandapio é tão extenso que literalmente não deixaria ninguém do lado de fora, se realizado integralmente.
Como não é possível realizá-lo por completo, ele somente pode ser
realizado de forma seletiva, particularmente – ainda que não
exclusivamente – nos amaldiçoados quatro “pés”. Seletividade do sistema
penal. Definitivamente em nada se assemelha ao nosso Direito Penal
igualitário.
Em Tangamandapio o cenário em que se desenrola o jogo é sempre o mesmo. O resultado é previsível: o home team
sempre ganha e o acusado é tratado como visitante indesejado em
território hostil e inóspito, dominado pelos “nativos”, que atacam
sempre com tática de guerrilha. Pobre defensor: sempre pego com calças
curtas. Azar é dele: ninguém mandou querer brincar de visitante.
Após a escolha dos personagens e distribuição dos controles,
inicia-se o combate, que normalmente é dividido em vários rounds.
Durante estes “rounds” o acusador utiliza táticas não contempladas nas
regras do jogo: cheat codes ampliam a resistência de seu personagem e aumentam a força dos golpes, sob os auspícios de um juiz cheerleader que está sempre pronto a entrar em campo e garantir a vitória do home team a
qualquer custo. Se o resultado do jogo ficar em questão e a incerteza
impedir a condenação, rapidamente o juiz deixará de lado os pompons e
assumira seu lado mais sinistro, assegurando o triunfo do in dubio pro hell: o jogo jamais pode terminar com absolvição. Lá em Tangamandapio a
sociedade nunca perde para o inimigo. Não é por acaso que eles não
cansam de ganhar posição no ranking mundial de população carcerária.
O home team sempre tem mais vidas. Não importa quantas vezes
o defensor consiga a proeza de triunfar nos rounds individualmente
considerados: por mais que ganhe batalhas, jamais vencerá a guerra que é
o processo penal do inimigo que impera em Tangamandapio.
No final, vem o “fatality”: hora de ostentar a punição. Após o
acusado já estar “nocauteado”, “na lona”, completamente “derrotado”, o
juiz e o acusador executam conjuntamente o “fatality” e encerram de
forma sangrenta o combate. Aliás, o jogo é tão sanguinário que se o
acusador deixar de lado o controle e abdicar da luta, o juiz empunhará
em suas mãos a espada da justiça e fará ele mesmo o serviço: revelará
ritualmente a “verdade” e exercerá narrativamente o poder de penar, para
delírio de todos que torcem para o home team.
E como torcem. A criminologia midiática é forte em Tangamandapio. O
povode lá adora crime e punição. Criaram gosto por isso. O Brasil é um
país de técnicos de futebol. Lá é um país de penalistas. Todos tem uma
solução para o crime e para a criminalidade. Que estranho, não?
Assim, com o apoio da população, juízes e acusadores tem o “controle”
nas mãos e são “donos” do “videogame”: continuam fazendo mandos e
desmandos em Tangamandapio.
Aliás, são tão terríveis por lá que recentemente inventaram um botão
“reset” que simplesmente elimina a coisa julgada penal e permite a
reintrodução da persecução penal. Fascinante.
Pensando bem, até que isso é legal. Quem sabe não trazemos esse sistema pra cá? Bem que ele podia nos ajudar.
Patuleia, prepare-se: GAME OVER!
Diego Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Penal e Processo Penal e autor de obras jurídicas.
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