sexta-feira, 13 de março de 2015

Mortal Kombat Judicial e sujeição criminal: Tangamandapio e seu adorável sistema penal



Por Salah H. Khaled Jr. e Diego Bayer 

Em um local chamado Tangamandapio eles têm um sistema processual penal muito peculiar: o destino do acusado é decidido através de uma partida de “Mortal Kombat”, disputada em um console caseiro de videogame.

Poderia até soar como piada, mas a situação é verdadeiramente alarmante. Nós que vivemos em um país civilizado nos espantamos com práticas punitivas dessa ordem: afinal, nosso processo é estruturado em torno da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, do in dubio pro reo, da ampla defesa, contraditório, paridade de armas e assim por diante.


Não há como não se chocar: enquanto nos somos adeptos do devido processo legal, eles simplesmente entregam a decisão sobre a imposição da pena a uma partida de videogame! Mas que absurdo!

Mas não pense que a coisa fica por aí. Esse é apenas o começo da brincadeira: lá em Tangamandapio os controles bons sempre estão nas mãos do juiz e do acusador e os personagens mais “fortes” sempre são reservados a eles: nada mais correto, afinal, representam a “sociedade”, ou seja, os interesses dos “homens de bem” em confronto com os “pseudodireitos individuais” do acusado.

Muitos irão perguntar: mas e o defensor? Em Tangamandapio o advogado sempre recebe um controle detonado, com a funcionalidade inteiramente prejudicada. Um controle velho e surrado basta para o defensor. Afinal, ele no máximo é um auxiliar, ou no pior dos casos, um triste empecilho para a diversão alheia: seu verdadeiro sentido consiste em apressar a condenação oferecendo a mínima resistência possível.

Em Tangamandapio o jogo é jogado para deleite do juiz e do acusador. Eles são parceiros de todas as horas: o primeiro inclusive costuma rotineiramente “suprir” a falta do segundo quando ele não se faz presente. Não se espante. Nada mais natural: afinal estão irmanados pelo propósito comum de combate ao mal.

Os dois colaboram ativamente e inclusive dividem os livros de estratégias mais atualizados, com todos os macetes necessários para triunfar sobre os adversários.  Rotineiramente são vistos juntos após o expediente recordando os casos mais célebres em que sua participação conjunta foi decisiva para o resultado final. Sabemos que tudo isso soa muito estranho para quem está acostumado com um juiz sistemicamente imparcial. Mas cada povo tem seus costumes, ora bolas.

O ritual que envolve o jogo é fascinante. Todos sabem que uma partida de Mortal Kombat inicia com a escolha dos personagens. Mas ela não é aleatória em Tangamandapio, ou verdadeiramente entregue para escolha dos jogadores. Utiliza-se lá a regra de “um fica com o personagem bom, ou seja, o mais forte” enquanto o outro sempre fica com o “mais fraco”. Juiz e acusador se revezam com o mais forte, enquanto que para o defensor sobra sempre o mais fraco. Nada mais justo: já estão fazendo uma grande concessão permitindo que alguém jogue pelo acusado. Como se já não bastasse o controle que não comanda ou que praticamente não responde, o personagem mais fraco invariavelmente será reservado ao defensor. Se o acusado tiver a infelicidade de ser enquadrado em um dos quatro “pês”, ou seja, “o pardo, o preto, o pobre e a prostituta”, o defensor provavelmente receberá um controle com pilhas gastas. Eis aí o sentido por trás do jogo: a diversão durará alguns minutos até que ele se torne um mero espectador. O acusado tem apenas a ilusão de participação. Pode soar um tanto quanto hipócrita, mas os tangamandapienses tem certezas muito bem definidas quanto ao conteúdo e propósito do jogo. O resultado já está definido de antemão.

Desse modo, quem estiver com o controle bom nas mãos e com o personagem mais poderoso – normalmente é Goro – sempre conseguirá “vencer”: o jogo já começa com resultado predefinido e somente um jogador com extraordinárias habilidades poderá compensar a diferença, literalmente tendo que “provar sua inocência”. Proeza que por sinal raramente acontece em Tangamandapio, particularmente para certas pessoas.

Lá em Tangamandapio o acusado já está devidamente etiquetado antes que a partida sequer comece. E isso não tem relação alguma com uma condição pessoal de predisposição ao crime, mas com um complexo processo de interação social que literalmente inventa a figura do criminoso e trabalha para confirmar no processo essa invenção: Mortal Kombat não é nada mais que o elemento formal de um complexo processo de sujeição criminal dos alvos eleitos pelo sistema penal daquele simpático país.
Alvos? Mas como assim? Explicamos. O sistema de proibições e mandamentos penais de Tangamandapio é muito extenso e abrangente. De modo algum se assemelha ao nosso sistema de Direito Penal moderno, estruturado em torno da ideia de ultima ratio e reservado somente às lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes. Como se sabe, o programa criminalizante de Tangamandapio é tão extenso que literalmente não deixaria ninguém do lado de fora, se realizado integralmente.



Como não é possível realizá-lo por completo, ele somente pode ser realizado de forma seletiva, particularmente – ainda que não exclusivamente – nos amaldiçoados quatro “pés”. Seletividade do sistema penal. Definitivamente em nada se assemelha ao nosso Direito Penal igualitário.
Em Tangamandapio o cenário em que se desenrola o jogo é sempre o mesmo. O resultado é previsível: o home team sempre ganha e o acusado é tratado como visitante indesejado em território hostil e inóspito, dominado pelos “nativos”, que atacam sempre com tática de guerrilha. Pobre defensor: sempre pego com calças curtas. Azar é dele: ninguém mandou querer brincar de visitante.

Após a escolha dos personagens e distribuição dos controles, inicia-se o combate, que normalmente é dividido em vários rounds. Durante estes “rounds” o acusador utiliza táticas não contempladas nas regras do jogo: cheat codes ampliam a resistência de seu personagem e aumentam a força dos golpes, sob os auspícios de um juiz cheerleader que está sempre pronto a entrar em campo e garantir a vitória do home team a qualquer custo. Se o resultado do jogo ficar em questão e a incerteza impedir a condenação, rapidamente o juiz deixará de lado os pompons e assumira seu lado mais sinistro, assegurando o triunfo do in dubio pro hell: o jogo jamais pode terminar com absolvição. Lá em Tangamandapio a sociedade nunca perde para o inimigo. Não é por acaso que eles não cansam de ganhar posição no ranking mundial de população carcerária.

O home team sempre tem mais vidas. Não importa quantas vezes o defensor consiga a proeza de triunfar nos rounds individualmente considerados: por mais que ganhe batalhas, jamais vencerá a guerra que é o processo penal do inimigo que impera em Tangamandapio.

No final, vem o “fatality”: hora de ostentar a punição. Após o acusado já estar “nocauteado”, “na lona”, completamente “derrotado”, o juiz e o acusador executam conjuntamente o “fatality” e encerram de forma sangrenta o combate. Aliás, o jogo é tão sanguinário que se o acusador deixar de lado o controle e abdicar da luta, o juiz empunhará em suas mãos a espada da justiça e fará ele mesmo o serviço: revelará ritualmente a “verdade” e exercerá narrativamente o poder de penar, para delírio de todos que torcem para o home team.

E como torcem. A criminologia midiática é forte em Tangamandapio. O povode lá adora crime e punição. Criaram gosto por isso. O Brasil é um país de técnicos de futebol. Lá é um país de penalistas. Todos tem uma solução para o crime e para a criminalidade. Que estranho, não?
Assim, com o apoio da população, juízes e acusadores tem o “controle” nas mãos e são “donos” do “videogame”: continuam fazendo mandos e desmandos em Tangamandapio.

Aliás, são tão terríveis por lá que recentemente inventaram um botão “reset” que simplesmente elimina a coisa julgada penal e permite a reintrodução da persecução penal. Fascinante.
Pensando bem, até que isso é legal. Quem sabe não trazemos esse sistema pra cá? Bem que ele podia nos ajudar.

Patuleia, prepare-se: GAME OVER!

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor adjunto de Direito penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.  Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013.Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013.


Diego Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Penal e Processo Penal e autor de obras jurídicas.

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