segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Comentário do Prof. Ivan Luís Marques sobre a Súmula Vinculante n. 11: uso de algemas

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.


Veja os comentários do professor Ivan Luís Marques (Mestre em Direito pela USP).

"Com a chamada Reforma do Judiciário, introduzida em nosso ordenamento jurídico-constitucional pela Emenda 45/2004, criou-se o instituto denominado súmula com efeitos vinculantes.

De competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a súmula vinculante, para ser editada, deve preencher alguns requisitos básicos expressos no art. 103-A, regulamentado pela Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Entre eles podemos citar:

• a súmula é um entendimento da maioria dos ministros do STF a respeito de alguma norma preexistente;
• a súmula será editada após reiteradas decisões no mesmo sentido.

Para confirmar a necessidade do vínculo entre o texto da súmula vinculante e uma regra jurídica determinada a ser interpretada, transcrevemos o § 1º do art. 2º da Lei 11.417, que possui redação idêntica à do art. 103-A da Constituição Federal:

“Art. 2.º (…) § 1º O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão”.

Encontra-se expresso que o STF só poderá editar súmulas vinculantes que tenham por objeto normas determinadas.

Quanto à segunda exigência, urge sejam proferidas reiteradas decisões no mesmo sentido, para justificar a edição de uma súmula com força normativa capaz de vincular toda a Administração Pública. Ausente este requisito, a súmula padecerá de vício formal.

Sem uma regra jurídica determinada e reiteradas decisões, o STF não possui autorização constitucional ou legal para editar súmulas de efeito vinculante. As regras são claras e bem objetivas.

Critica-se constantemente o chefe do Poder Executivo por abusar da edição das medidas provisórias, editando-as em momentos onde não estão previstos os requisitos da relevância e urgência (art. 62, CF), situações em que usurpa a função típica do Poder Legislativo.

Agora, presenciamos a cúpula do Poder Judiciário legislando e ignorando um dos requisitos objetivos da edição da súmula vinculante presente na Constituição da República, qual seja, o da interpretação de regra determinada.

Estamos nos referindo à Súmula Vinculante n. 11, publicada no Diário Oficial em 21 de agosto de 2008.

Em sessão plenária do dia 13 de agosto de 2008, por votação unânime, aprovou-se a seguinte redação:  

“Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

Quanto ao requisito das reiteradas decisões, nem a Constituição da República, nem a lei que regulamentou o instituto definem, de forma quantitativa, quantas decisões seriam necessárias para falarmos em reiteração. Desta forma, deixa-se em aberto a situação para análise a ser feita pelo próprio STF.

Sobre o uso das algemas, a decisão do STF citou o RHC 56.465 (1978), o HC 71.195 (1995), o HC 89.429 (2007) e o HC 91.952 (2008). Em regra, o STF discutiu temas como a fuga e a violência por parte da pessoa algemada como exceções à regra da não utilização das algemas.

E quanto ao requisito do objeto da súmula vinculante? Qual foi a regra determinada escolhida pelo STF para a constitucional interpretação?

Mencionou-se, na decisão, os artigos 1º, III e 5º, III, X e XLIX, todos da Constituição da República; o art. 350 do Código Penal; o art. 284 do Código de Processo Penal; o art. 4º, a, da Lei 4.898/65 e o art. 234, § 1º do Código de Processo Penal Militar.

Além dos dispositivos mencionados na decisão do Supremo e de algumas Portarias estaduais, existem outros atos normativos tratando do tema das algemas.

O Decreto 19.903/1950, do Estado de São Paulo, regulamentou o uso das algemas por quem tenta a fuga ou repele a justa prisão com violência.

O artigo 199 da Lei de Execução Penal — Lei 7.210/84 reza que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. Pergunta-se: foi editado algum decreto regulamentando a questão? A resposta é negativa.

A verdade é que, desde 1984 até 2013, a utilização das algemas como instrumento de repressão pelo poder público não foi substancialmente regulamentado no Brasil. A previsão de alguns atos normativos não regulamentados, verdadeira lacuna legal, deu margem para o uso arbitrário das algemas em casos concretos.

O instrumento criado para assegurar o cumprimento da ordem de prisão passou a ser um símbolo de atuação do Estado contra o crime, amplamente divulgado pelos meios de comunicação. O metal gelado das algemas lembra a frieza do tratamento normativo dado a esta importante questão até o presente momento, que tem incidência direta na dignidade da pessoa presa cautelarmente, inocente até este momento.

O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição. Não apenas no sentido físico da expressão ou literal de seus dispositivos, mas principalmente em relação às conquistas da humanidade expressas em regras e princípios com força normativa(1).

A omissão do Poder Público em dar tratamento legal para questões importantes relacionadas à dignidade humana vem exigindo do Supremo o exercício da função legislativa atípica com abrangência sem precedentes em nossa história jurídica.

Podemos citar como exemplos concretos, os efeitos erga omnes para controle difuso de constitucionalidade, dispensando a Resolução do Senado (HC 82.959-7); efeitos imediatos para o deferimento dos mandados de injunção, não ficando dependente de uma resposta do Congresso Nacional (MI 107); e agora, a Súmula Vinculante n. 11 (editada por força do julgamento do HC 91.952/2008).

A Súmula Vinculante n. 11 carrega em si o vício de inconstitucionalidade por quebra do princípio do pacto federativo, da regra da separação dos poderes. O STF está legislando para proteger um direito humano fundamental tendo em vista o descaso normativo em regulamentar a questão das algemas. Importante frisar que a súmula 11 poderia até, em tese, ser constitucional, mas desde que não contivesse o seguinte trecho em sua redação: “(…) justificada a excepcionalidade por escrito”. Não existe lei em vigor no País que traga qualquer palavra que possa admitir este trecho da Súmula 11 como interpretação. Aqui o Supremo legislou. Inovou o ordenamento jurídico com seu ato normativo e estipulou sanção civil, administrativa e penal para o seu descumprimento.

Entretanto, concordamos que não pode o guardião da Constituição ficar a mercê da regulamentação federal que nunca veio. Seria uma irresponsabilidade do STF omitir-se ao julgar aviltantes situações nos casos concretos que chegam à sua porta. O magistrado do século XXI tem o dever de trabalhar com a noção de Direito Penal constitucional e assegurar sua integral observância(2).

Se o STF está certo e errado ao mesmo tempo, podemos rotular esta questão como verdadeira ponderação de valores constitucionais(3): de um lado o ser humano e sua dignidade; do outro, o Poder Judiciário legislando para suprir lacuna normativa.

A gravidade da questão não gira em torno da regulamentação da questão das algemas. O problema reside em desrespeitar as regras constitucionais do art. 2º e 103-A da CF. Esse exercício, que ultrapassa os limites da hermenêutica e assume um papel integrador e regulador, não traz licitude e legitimidade para a Súmula vinculante 11 que não interpreta, ao contrário, cria regras inexistentes e de vinculação para toda a Administração Pública e para o Poder Judiciário".

Notas
(1) Sobre a força normativa dos princípios, ver a aula apresentada em forma de voto pelo ministro Ricardo Lewandowski, no Recurso Extraordinário 579.951-4.

(2) Sobre a relação constitucional entre a Magistratura e os princípios constitucionais, cf. Alberto Silva Franco, Código Penal e sua Interpretação, p. 60.

(3) Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, passim.

Fontes:  Portal Atualidades do Direito (http://atualidadesdodireito.com.br) 

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