Só é lícito o uso de algemas em casos de
resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade
física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros,
justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da
prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado.
Veja os comentários do professor Ivan Luís Marques (Mestre em Direito pela USP).
"Com a chamada Reforma do Judiciário,
introduzida em nosso ordenamento jurídico-constitucional pela Emenda
45/2004, criou-se o instituto denominado súmula com efeitos vinculantes.
De competência exclusiva do Supremo
Tribunal Federal, a súmula vinculante, para ser editada, deve preencher
alguns requisitos básicos expressos no art. 103-A, regulamentado pela
Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Entre eles podemos citar:
• a súmula é um entendimento da maioria dos ministros do STF a respeito de alguma norma preexistente;
• a súmula será editada após reiteradas decisões no mesmo sentido.
Para confirmar a necessidade do vínculo
entre o texto da súmula vinculante e uma regra jurídica determinada a
ser interpretada, transcrevemos o § 1º do art. 2º da Lei 11.417, que
possui redação idêntica à do art. 103-A da Constituição Federal:
“Art. 2.º (…) § 1º O enunciado da
súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de
normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou
entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete
grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre
idêntica questão”.
Encontra-se expresso que o STF só poderá editar súmulas vinculantes que tenham por objeto normas determinadas.
Quanto à segunda exigência, urge sejam
proferidas reiteradas decisões no mesmo sentido, para justificar a
edição de uma súmula com força normativa capaz de vincular toda a
Administração Pública. Ausente este requisito, a súmula padecerá de
vício formal.
Sem uma regra jurídica determinada e
reiteradas decisões, o STF não possui autorização constitucional ou
legal para editar súmulas de efeito vinculante. As regras são claras e
bem objetivas.
Critica-se constantemente o chefe do
Poder Executivo por abusar da edição das medidas provisórias,
editando-as em momentos onde não estão previstos os requisitos da
relevância e urgência (art. 62, CF), situações em que usurpa a função
típica do Poder Legislativo.
Agora, presenciamos a cúpula do Poder
Judiciário legislando e ignorando um dos requisitos objetivos da edição
da súmula vinculante presente na Constituição da República, qual seja, o
da interpretação de regra determinada.
Estamos nos referindo à Súmula Vinculante n. 11, publicada no Diário Oficial em 21 de agosto de 2008.
Em sessão plenária do dia 13 de agosto de 2008, por votação unânime, aprovou-se a seguinte redação:
“Só
é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de
fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do
preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob
pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere,
sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
Quanto ao requisito das reiteradas
decisões, nem a Constituição da República, nem a lei que regulamentou o
instituto definem, de forma quantitativa, quantas decisões seriam
necessárias para falarmos em reiteração. Desta forma, deixa-se em aberto
a situação para análise a ser feita pelo próprio STF.
Sobre o uso das algemas, a decisão do STF citou o RHC 56.465 (1978), o HC 71.195 (1995), o HC 89.429 (2007) e o HC
91.952 (2008). Em regra, o STF discutiu temas como a fuga e a violência
por parte da pessoa algemada como exceções à regra da não utilização
das algemas.
E quanto ao requisito do objeto da súmula vinculante? Qual foi a regra determinada escolhida pelo STF para a constitucional interpretação?
Mencionou-se, na decisão, os artigos 1º,
III e 5º, III, X e XLIX, todos da Constituição da República; o art. 350
do Código Penal; o art. 284 do Código de Processo Penal; o art. 4º, a, da Lei 4.898/65 e o art. 234, § 1º do Código de Processo Penal Militar.
Além dos dispositivos mencionados na
decisão do Supremo e de algumas Portarias estaduais, existem outros atos
normativos tratando do tema das algemas.
O Decreto 19.903/1950, do Estado de São
Paulo, regulamentou o uso das algemas por quem tenta a fuga ou repele a
justa prisão com violência.
O artigo 199 da Lei de Execução Penal — Lei 7.210/84 reza que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. Pergunta-se: foi editado algum decreto regulamentando a questão? A resposta é negativa.
A verdade é que, desde 1984 até 2013, a
utilização das algemas como instrumento de repressão pelo poder público
não foi substancialmente regulamentado no Brasil. A previsão de alguns
atos normativos não regulamentados, verdadeira lacuna legal, deu margem
para o uso arbitrário das algemas em casos concretos.
O instrumento criado para assegurar o
cumprimento da ordem de prisão passou a ser um símbolo de atuação do
Estado contra o crime, amplamente divulgado pelos meios de comunicação. O
metal gelado das algemas lembra a frieza do tratamento normativo dado a
esta importante questão até o presente momento, que tem incidência
direta na dignidade da pessoa presa cautelarmente, inocente até este
momento.
O Supremo Tribunal Federal é o guardião
da Constituição. Não apenas no sentido físico da expressão ou literal de
seus dispositivos, mas principalmente em relação às conquistas da
humanidade expressas em regras e princípios com força normativa(1).
A omissão do Poder Público em dar
tratamento legal para questões importantes relacionadas à dignidade
humana vem exigindo do Supremo o exercício da função legislativa atípica
com abrangência sem precedentes em nossa história jurídica.
Podemos citar como exemplos concretos, os efeitos erga omnes para controle difuso de constitucionalidade, dispensando a Resolução do Senado (HC
82.959-7); efeitos imediatos para o deferimento dos mandados de
injunção, não ficando dependente de uma resposta do Congresso Nacional
(MI 107); e agora, a Súmula Vinculante n. 11 (editada por força do
julgamento do HC 91.952/2008).
A Súmula Vinculante n. 11 carrega em si o
vício de inconstitucionalidade por quebra do princípio do pacto
federativo, da regra da separação dos poderes. O STF está legislando
para proteger um direito humano fundamental tendo em vista o descaso
normativo em regulamentar a questão das algemas. Importante frisar que a
súmula 11 poderia até, em tese, ser constitucional, mas desde que não
contivesse o seguinte trecho em sua redação: “(…) justificada a excepcionalidade por escrito”.
Não existe lei em vigor no País que traga qualquer palavra que possa
admitir este trecho da Súmula 11 como interpretação. Aqui o Supremo
legislou. Inovou o ordenamento jurídico com seu ato normativo e
estipulou sanção civil, administrativa e penal para o seu
descumprimento.
Entretanto, concordamos que não pode o
guardião da Constituição ficar a mercê da regulamentação federal que
nunca veio. Seria uma irresponsabilidade do STF omitir-se ao julgar
aviltantes situações nos casos concretos que chegam à sua porta. O
magistrado do século XXI tem o dever de trabalhar com a noção de Direito
Penal constitucional e assegurar sua integral observância(2).
Se o STF está certo e errado ao mesmo
tempo, podemos rotular esta questão como verdadeira ponderação de
valores constitucionais(3): de um lado o ser humano e sua dignidade; do
outro, o Poder Judiciário legislando para suprir lacuna normativa.
A gravidade da questão não gira em torno
da regulamentação da questão das algemas. O problema reside em
desrespeitar as regras constitucionais do art. 2º e 103-A da CF. Esse
exercício, que ultrapassa os limites da hermenêutica e assume um papel
integrador e regulador, não traz licitude e legitimidade para a Súmula
vinculante 11 que não interpreta, ao contrário, cria regras inexistentes
e de vinculação para toda a Administração Pública e para o Poder
Judiciário".
Notas
(1) Sobre a força normativa dos princípios, ver a aula apresentada em forma de voto pelo ministro Ricardo Lewandowski, no Recurso Extraordinário 579.951-4.
(2) Sobre a relação constitucional entre a Magistratura e os princípios constitucionais, cf. Alberto Silva Franco, Código Penal e sua Interpretação, p. 60.
(3) Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, passim.
Fontes: Portal Atualidades do Direito (http://atualidadesdodireito.com.br)
Fontes: Portal Atualidades do Direito (http://atualidadesdodireito.com.br)
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