sexta-feira, 19 de julho de 2013

A mídia, a reprodução do medo e a influência da política criminal

Os meios de comunicação ao selecionarem os fatos, selecionam também quais informações e pessoas serão importantes em relação ao fato, explicando e interpretando a “realidade”. Bertrand (1999, p. 53) traz que “inegavelmente, a mídia determina a ordem do dia da sociedade: ela não pode ditar às pessoas o que pensar, mas decide no que elas vão pensar”.


Em vista disto, Schecaira (1996, p. 16) entende que a mídia é uma fábrica ideológica condicionadora, pois não hesitam em alterar a realidade dos fatos criando um processo permanente de indução criminalizante. Traz ainda que:
Zaffaroni e Cervini (…) destacam que os meios de comunicação de massas, ao agirem dessa forma, atuam impedindo os processos de descriminalização de condutas de bagatela (por exemplo), incentivando a majoração de penas, constituindo-se, pois, num dos principais obstáculos à criação de uma sociedade democrática fundada nos valores de respeito aos direitos dos cidadãos e da dignidade humana.
Estes meios de comunicação, em decorrência da nova política neoliberal, utiliza-se deste fenômeno midiático criminal como produto a ser ofertado ao público (BOURDIEU, 1997, p. 65). Assim, encontra na população uma receptividade, criando um ciclo a partir do medo e da insegurança coletiva, fomenta medidas políticas, que acabam por violar garantias constitucionais, vulnerabilizando os direitos humanos e aumentando cada vez mais o Estado punitivo.

Callegari e Silva (2012, p. 23) trazem que
O direito penal acaba por receber uma série de influxos ante às circunstâncias prenotadas. Nesse sentido, as garantias elementares dos acusados são constantemente questionadas, especialmente pelo fato de que os princípios, como o da presunção de inocência, apresentam-se como estranhos à lógica temporal das comunicações da sociedade atual, uma vez que o tempo do direito, como bem descreveu François Ost[1], apresenta critérios e parâmetros próprios.
Nilo Batista (1990, p. 138), expõe que “a imprensa tem o formidável poder de apagar da Constituição o princípio da presunção de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. Não raras vezes, os acusados são tratados como condenados e sofrem a estigmatização do linchamento público sem que, ao menos, tenham qualquer possibilidade concreta de defesa.

A partir dessa propagação de políticas e o sistema penal cada vez mais carregado, forma-se uma sensação de intranquilidade, gerando uma dominação do “medo”. Este medo tem sido utilizado para controlar determinados grupos, criando uma desigualdade entre os cidadãos. Os meios de comunicação disseminam este medo e desvirtuam o senso comum, tornando propícia a dominação através da manipulação do imaginário popular. Ao reproduzir este medo os meios de comunicação utilizam seu poder através do discurso, impondo um terror social, omitindo muitas vezes a realidade (BOLDT, 2013, p. 96).

Bauman (2008, p. 08) ensina que
O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivos claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, cessá-la estiver além do nosso alcance.
Boldt (2013, p.96) assinala
Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo.
Como se vê, a cobertura de atos e conflitos violentos pelos meios de comunicação não apenas relata o fato, mas tem função de sensibilizar, “estimulando a curiosidade, a intolerância e, por fim, o próprio medo” (PASTANA, 2003, p. 73). Silva Sánchez (2002, p. 40) complementa expondo que o medo da criminalidade constitui a concretização de um conjunto de medos difusos dificilmente perceptíveis, razão pela qual poderíamos considera-lo como “metáfora da insegurança vital generalizada”.

Para os meios de comunicação a imagem do crime e do criminoso (através da criação do “estereótipo do criminoso”) são de completa importância, pois é através desta que se causa o pânico social e o medo da criminalidade, utilizando-se sempre de pessoas de baixa renda para servirem de “chivo expiatorio[2]” (ANITUA, 2003, p. 306). Estes “criminosos” identificados pelos meios de comunicação são desumanizados, levando os telespectadores a “desprezar, estigmatizar, discriminar os pobres, como se essas pessoas não fossem gente” (COIMBRA, 2001, p. 62).

Com isso, propagando o medo do criminoso (identificado como pobre), os meios de comunicação aprofundam as desigualdades e exclusão dessa parcela da sociedade, aumentando as intolerâncias e os preconceitos. Utiliza-se do medo como estratégia de controle, criminalização e brutalização dos pobres[3], de forma que seja legitimo as demandas de pedidos por segurança, tudo em virtude do espetáculo penal criado pela imprensa. 

Na tentativa de combater este medo, agravado pela vulnerabilidade e impossibilidade de prever uma possível vitimização, reage-se através da criminalização primária, utilizando-se do poder legislativo para a criação de normas penais para a solução do problema. O Direito Penal passa a ser apenas um confronto aos medos sociais, ao invés de atuar como instrumento garantidor dos bens juridicamente protegidos.

Esta criação de normas penais para combater a criminalidade não previne as pessoas da vitimização, e tão somente servem para superlotar as penitenciárias, uma vez que não atuam no foco do problema, e sim, tentam apenas maquiar os problemas através da criação das normas. Em razão do aumento dos programas sensacionalistas, a mídia exerce influência sobre a representação do crime e dos infratores, utilizando do medo para determinar os “excluídos”, para então poder justificar a estigmatização e a implementação de normas severas contra os estigmatizados.

Todas as medidas estigmatizantes decorrentes da simples acusação já não são nenhuma novidade. Entretanto, uma das situações fundamentais da simbiose entre incerteza e insegurança reside na inserção de constantes medidas de urgência no âmbito do direito penal como um todo.

Ante tal realidade, as prisões cautelares parecem ter deixado de ser consideradas como excepcionais para tornarem-se regra frente aos anseios punitivos e à constante tentativa de antecipar-se os efeitos de uma possível condenação. Todavia, conforme ressalta Miguel Tedesco Wedy (2006, p. 03), “na prisão provisória tem-se os mesmos efeitos da prisionalização ocorrida como apenado: a adoção de um modus vivendi totalitário e panóptico e a sua consequente estigmatização social”.

As manchetes nos meios de comunicação distorcem a realidade e acabam por aterrorizar a sociedade, ocupando lugar desproporcional junto ao público, desviando a atenção das razões que geram a criminalidade, sendo utilizada por candidatos políticos e pelos meios de comunicação, quais utilizam-se de discursos que disseminam o medo e propagam uma ideia de extermínio aos “criminosos”. Callegari e Silva (2012, p. 25) trazem que
Nesse sentido, as sucessivas tentativas de aceleração dos ritos processuais em sede de processo penal têm feito com que o Estado acabe se afastando dos limites preceituados pelo modelo de democracia insculpido no próprio Texto Constitucional. Em decorrência de tal circunstância, na prática, o que se verifica muitas vezes é uma aproximação substancial do modelo de processo penal cunhado com base no direito penal do inimigo.
Verifica-se que, diante da postura doutrinária descrita anteriormente, Günther Jakobs (2009, p. 37-39) ressalta que a tradicional concepção do imputado enquanto sujeito processual que participa ativamente dos procedimentos deve ser restringida em determinadas circunstâncias, uma vez que medidas restritivas como a impossibilidade de fazer provas, ser enganado e aplicar-se a prisão provisória, seriam formas legítimas de restrição de direitos diante da necessidade de se eliminar certos riscos. Perante tais circunstâncias, o pensador alemão aduz que, em determinadas situações, o ordenamento jurídico deve apresentar-se como uma organização de guerra frente aos perigos que ameaçam o Estado.

Diante da perspectiva do direito penal do inimigo, Cornelius Prittwitz (2007, p. 39-52) assinala que:
Es mi convicción, por ejemplo, que la libertad en competición con la seguridad ya ha perdido antes del “pistoletazo de salda”. Y también es mi convicción que esta superioridad de la seguridad no es una seguridad a corto plazo, una seguridad, que en verdad es dañina para la seguridad a largo plazo y sostenible. Creo que ni los terroristas, ni el crimen organizado, ni – por favor! – nuestros “chicos malos” destruyen, ni siquiera ponen gravemente en riesgo nuestra seguridad, nuestras sociedades liberales, nuestro Estado de Derecho. Pero si veo un verdadero riesgo que la lucha contra los terroristas, contra el crimen mas o menos organizado, contra la criminalidad en general – sea de jovenes, sea de extrajeros, sea de “managers” sea de trabajadores, sea lo que sea, pueden dañar hasta destruir los fundamentos de nuestros Estados (de Derecho) y sociedades (liberales). Lo que jo observo son gritos de batalla cada día más intensas, mas hostiles, es una percepción de inferioridad de la sociedad civil y del Estado de Derecho junto con una convicción irracional de la superioridad de nuestros “enemigos”.                
Para demonstrar como o sistema penal vem sendo maximizado, Jorio (2008, p. 188) criou um quadro comparativo que demonstra que está se criando uma tendência de punir mais severamente crimes contra o patrimônio contra crimes que atentam contra a vida, um dos mais importantes bens jurídicos tutelados, senão vejamos:

Delito Patrimonial
Pena (Reclusão)
Outros Delitos
Pena (Reclusão)
Furto Simples. Apropriação indébita. Receptação Simples.
1 a 4 anos
Sequestro (liberdade individual)
1 a 3 anos
Estelionato
1 a 5 anos
Aborto consentido (vida)
Lesão Corporal grave (integridade física)
1 a 4 anos
1 a 5 anos
Furto qualificado
2 a 8 anos
Lesão corporal gravíssima (integridade física)
Tortura Simples – equiparado a hediondo (integridade física e moral)
2 a 8 anos
Receptação qualificada
3 a 8 anos
Tráfico de pessoas (costumes)
3 a 8 anos

Ou seja, a subtração de coisa alheia sem violência, recebe uma pena maior do que o sequestro e que
o furto qualificado (igualmente desprovido de violência à pessoa), é punido mais duramente do que a lesão corporal grave e em intensidade idêntica à da lesão corporal gravíssima. Pior do que isso: o furto qualificado recebe apenamento idêntico àquele destinado à tortura, crime hediondo por equiparação. Finalmente, à receptação qualificada foram impostas as mesmas penas previstas para o tráfico de pessoas. Tal postura do legislador revela que, em matéria de ‘contrabando’, não há diferença se o objeto material do crime é um ser humano ou um bem material. (JORIO, 2008, p. 188)
Nota-se que a seleção criminal não se refere somente ao direito penal em abstrato (ou seja, criminalização primária[4]), mas também à criminalização secundária[5], “oportunidade na qual o Estado fará valer o seu jus puniendi, investigando, processando e, por fim, condenando ao cumprimento de uma pena o transgressor da lei penal editada anteriormente ao comportamento delitivo” (GRECO, 2005, p. 158).

Para isto, basta observar o ordenamento penal brasileiro que possuí uma infinidade de delitos contra o patrimônio, com penas iguais ou maiores que crimes contra a vida, que são tão danosos ou mais e tutelam o bem jurídico mais valioso, a vida. Através da manipulação das notícias, os meios de comunicação aumentam os medos e induzem ao pânico, reforçando uma falsidade a política criminal promovendo a criminalização e repressão, ofertando ao sistema penal uma legitimação para uma intervenção cada vez mais repressiva, criando um verdadeiro Estado Penal.

Essa política de criminalização da miséria e desvalorização dos grupos sociais faz com que aumentem os preconceitos e resultem na produção de “uma imagem pública do delinqüente com componentes de classe social, étnicos, de gênero e estéticos” (ZAFFARONI et al, 2003, p. 46). E os meios de comunicação são parte essencial neste processo, pois “contribuem para isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se às sentenças com qualificações como ‘vagabundos’, chacais, etc.” (ZAFFARONI, 2001, p. 134).

Os meios de comunicação acabam por divulgar os ilícitos cometidos por pessoas mais vulneráveis, como se fossem os únicos existentes na sociedade, ocultando determinados ilícitos, criando uma realidade parcial e levando o público a conclusões errôneas de que os criminosos são menos favorecidos. Ou seja, apesar dos prejuízos dos crimes ocultados (corrupção, desvio de dinheiro público, fraudes em licitações, fraudes contra a previdência, lavagem de dinheiro, etc.) serem mais danosos a sociedade, em face a influência dos meios de comunicação a sociedade clama pela repressão aos crimes visíveis (furtos, roubos, homicídios, estupros, lesões corporais), qual é objeto do “espetáculo criminal midiático” noticiado diariamente nos jornais.

Bauman (1999, p. 133) sustenta que “o que se passa durante os julgamentos de fraudadores de alto nível desafia as capacidades intelectuais do leitor comum de jornais e, ademais, é abominavelmente carente do drama que faz dos julgamentos de simples ladrões e assassinos um espetáculo tão fascinante”.

Verifica-se portanto, que os meios de comunicação não colaboram apenas para o processo de construção da imagem do inimigo (criminoso) – no Brasil quase sempre como dos setores de baixa renda – mas também auxilia na tarefa de eliminá-los, desconsiderando da ética e justificando a opressão punitiva. Para que tudo isso seja possível, é necessário disseminar a insegurança, derivada de medos profundos da maleficência “humana” e dos malfeitores “desumanos”, medos geralmente capitalizados em prol da repressão e em detrimento dos direitos e garantias individuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANITUA, Gabriel Ignacio. Justicia penal pública: un estudio a partir del principio de publicidad de los juicios penales. 1ª ed. – Buenos Aires: Editora Del Puerto, 2003.
BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ed. – Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de criminologia, 2002.
BAUMAN. Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
______________. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BERTRAND, Claude-Jean. A deontologia das mídias. Bauru: EDUSC, 1999.
BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CALLEGARI, André Luís Callegari; SILVA, Fabrício Antônio da. Política Criminal e medo: os influxos das diferentes faces do risco. In: Revista da AJURIS, ano 39, nº 126, Porto Alegre: AJURIS, jun. 2012, p. 13-38.
COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2001.
GREGO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 4 ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2009.
JORIO, Israel Domingos. Latrocínio: a desconstrução de um dogma – da inconstitucionalidade à inexistência do tipo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003.
PRITTWITZ, Cornelius. Estado e política criminal: a expansão do direito penal como forma simbólica de controle social. In: CALLEGARI, André Luís (Org.). La desigual competência entre seguridad y libertad. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. A mídia e o Direito Penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, ago.1996.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002.
WEDY, Miguel Tedesco. Teoria geral da prisão cautelar e estigmatização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
___________ et al. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1.


CITAÇÕES

[1] Ver: OST, François. O tempo do direito. Trad. Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget. 1999.
[2] Bode expiatório (tradução livre).
[3] Anitua (2003, p. 306) expõe que algunos individuos son utilizados por la sociedad para alcanzar el rechazo del auto-reproche, transferido al objeto de hostilidad del exterior”.
[4] Baratta (2002, p. 161) expõe que a criminalização primária consiste na prática do legislador em escolher quais condutas serão consideradas infrações. Consiste no momento em que as condutas desviadas não foram internalizadas pelo cidadão. É a lei penal agindo sob o cidadão.
[5] Baratta (2002, p.165) conclui ainda que, a criminalização secundária se dá pela decorrência de problemas sociais causados pela estigmatização, ou seja, no momento em que se identifica o acusado, este é rotulado pela mídia, ficando assim também identificado perante a sociedade.

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