Os meios de comunicação ao selecionarem os fatos, selecionam
também quais informações e pessoas serão importantes em relação ao fato,
explicando e interpretando a “realidade”. Bertrand (1999, p. 53) traz
que “inegavelmente, a mídia determina a ordem do dia da sociedade:
ela não pode ditar às pessoas o que pensar, mas decide no que elas vão
pensar”.
Em vista disto, Schecaira (1996, p. 16) entende que a mídia é uma
fábrica ideológica condicionadora, pois não hesitam em alterar a
realidade dos fatos criando um processo permanente de indução
criminalizante. Traz ainda que:
Zaffaroni e Cervini (…) destacam que os meios de comunicação de massas, ao agirem dessa forma, atuam impedindo os processos de descriminalização de condutas de bagatela (por exemplo), incentivando a majoração de penas, constituindo-se, pois, num dos principais obstáculos à criação de uma sociedade democrática fundada nos valores de respeito aos direitos dos cidadãos e da dignidade humana.
Estes meios de comunicação, em decorrência da nova política
neoliberal, utiliza-se deste fenômeno midiático criminal como produto a
ser ofertado ao público (BOURDIEU, 1997, p. 65). Assim, encontra na
população uma receptividade, criando um ciclo a partir do medo e da
insegurança coletiva, fomenta medidas políticas, que acabam por violar
garantias constitucionais, vulnerabilizando os direitos humanos e
aumentando cada vez mais o Estado punitivo.
Callegari e Silva (2012, p. 23) trazem que
O direito penal acaba por receber uma série de influxos ante às circunstâncias prenotadas. Nesse sentido, as garantias elementares dos acusados são constantemente questionadas, especialmente pelo fato de que os princípios, como o da presunção de inocência, apresentam-se como estranhos à lógica temporal das comunicações da sociedade atual, uma vez que o tempo do direito, como bem descreveu François Ost[1], apresenta critérios e parâmetros próprios.
Nilo Batista (1990, p. 138), expõe que “a imprensa tem o
formidável poder de apagar da Constituição o princípio da presunção de
inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. Não raras vezes, os
acusados são tratados como condenados e sofrem a estigmatização do
linchamento público sem que, ao menos, tenham qualquer possibilidade
concreta de defesa.
A partir dessa propagação de políticas e o sistema penal cada vez
mais carregado, forma-se uma sensação de intranquilidade, gerando uma
dominação do “medo”. Este medo tem sido utilizado para controlar
determinados grupos, criando uma desigualdade entre os cidadãos. Os
meios de comunicação disseminam este medo e desvirtuam o senso comum,
tornando propícia a dominação através da manipulação do imaginário
popular. Ao reproduzir este medo os meios de comunicação utilizam seu
poder através do discurso, impondo um terror social, omitindo muitas
vezes a realidade (BOLDT, 2013, p. 96).
Bauman (2008, p. 08) ensina que
O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivos claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, cessá-la estiver além do nosso alcance.
Boldt (2013, p.96) assinala
Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo.
Como se vê, a cobertura de atos e conflitos violentos pelos meios de
comunicação não apenas relata o fato, mas tem função de sensibilizar, “estimulando a curiosidade, a intolerância e, por fim, o próprio medo”
(PASTANA, 2003, p. 73). Silva Sánchez (2002, p. 40) complementa expondo
que o medo da criminalidade constitui a concretização de um conjunto de
medos difusos dificilmente perceptíveis, razão pela qual poderíamos
considera-lo como “metáfora da insegurança vital generalizada”.
Para os meios de comunicação a imagem do crime e do criminoso
(através da criação do “estereótipo do criminoso”) são de completa
importância, pois é através desta que se causa o pânico social e o medo
da criminalidade, utilizando-se sempre de pessoas de baixa renda para
servirem de “chivo expiatorio[2]”
(ANITUA, 2003, p. 306). Estes “criminosos” identificados pelos meios de
comunicação são desumanizados, levando os telespectadores a “desprezar, estigmatizar, discriminar os pobres, como se essas pessoas não fossem gente” (COIMBRA, 2001, p. 62).
Com isso, propagando o medo do criminoso (identificado como pobre),
os meios de comunicação aprofundam as desigualdades e exclusão dessa
parcela da sociedade, aumentando as intolerâncias e os preconceitos.
Utiliza-se do medo como estratégia de controle, criminalização e
brutalização dos pobres[3], de forma que seja legitimo as demandas de pedidos por segurança, tudo em virtude do espetáculo penal criado pela imprensa.
Na tentativa de combater este medo, agravado pela vulnerabilidade e
impossibilidade de prever uma possível vitimização, reage-se através da
criminalização primária, utilizando-se do poder legislativo para a
criação de normas penais para a solução do problema. O Direito Penal
passa a ser apenas um confronto aos medos sociais, ao invés de atuar
como instrumento garantidor dos bens juridicamente protegidos.
Esta criação de normas penais para combater a criminalidade não
previne as pessoas da vitimização, e tão somente servem para superlotar
as penitenciárias, uma vez que não atuam no foco do problema, e sim,
tentam apenas maquiar os problemas através da criação das normas. Em
razão do aumento dos programas sensacionalistas, a mídia exerce
influência sobre a representação do crime e dos infratores, utilizando
do medo para determinar os “excluídos”, para então poder justificar a
estigmatização e a implementação de normas severas contra os
estigmatizados.
Todas as medidas estigmatizantes decorrentes da simples acusação já
não são nenhuma novidade. Entretanto, uma das situações fundamentais da
simbiose entre incerteza e insegurança reside na inserção de constantes
medidas de urgência no âmbito do direito penal como um todo.
Ante tal realidade, as prisões cautelares parecem ter deixado de ser
consideradas como excepcionais para tornarem-se regra frente aos anseios
punitivos e à constante tentativa de antecipar-se os efeitos de uma
possível condenação. Todavia, conforme ressalta Miguel Tedesco Wedy
(2006, p. 03), “na prisão provisória tem-se os mesmos efeitos da
prisionalização ocorrida como apenado: a adoção de um modus vivendi
totalitário e panóptico e a sua consequente estigmatização social”.
As manchetes nos meios de comunicação distorcem a realidade e acabam
por aterrorizar a sociedade, ocupando lugar desproporcional junto ao
público, desviando a atenção das razões que geram a criminalidade, sendo
utilizada por candidatos políticos e pelos meios de comunicação, quais
utilizam-se de discursos que disseminam o medo e propagam uma ideia de
extermínio aos “criminosos”. Callegari e Silva (2012, p. 25) trazem que
Nesse sentido, as sucessivas tentativas de aceleração dos ritos processuais em sede de processo penal têm feito com que o Estado acabe se afastando dos limites preceituados pelo modelo de democracia insculpido no próprio Texto Constitucional. Em decorrência de tal circunstância, na prática, o que se verifica muitas vezes é uma aproximação substancial do modelo de processo penal cunhado com base no direito penal do inimigo.
Verifica-se que, diante da postura doutrinária descrita
anteriormente, Günther Jakobs (2009, p. 37-39) ressalta que a
tradicional concepção do imputado enquanto sujeito processual que
participa ativamente dos procedimentos deve ser restringida em
determinadas circunstâncias, uma vez que medidas restritivas como a
impossibilidade de fazer provas, ser enganado e aplicar-se a prisão
provisória, seriam formas legítimas de restrição de direitos diante da
necessidade de se eliminar certos riscos. Perante tais circunstâncias, o
pensador alemão aduz que, em determinadas situações, o ordenamento
jurídico deve apresentar-se como uma organização de guerra frente aos
perigos que ameaçam o Estado.
Diante da perspectiva do direito penal do inimigo, Cornelius Prittwitz (2007, p. 39-52) assinala que:
Es mi convicción, por ejemplo, que la libertad en competición con la seguridad ya ha perdido antes del “pistoletazo de salda”. Y también es mi convicción que esta superioridad de la seguridad no es una seguridad a corto plazo, una seguridad, que en verdad es dañina para la seguridad a largo plazo y sostenible. Creo que ni los terroristas, ni el crimen organizado, ni – por favor! – nuestros “chicos malos” destruyen, ni siquiera ponen gravemente en riesgo nuestra seguridad, nuestras sociedades liberales, nuestro Estado de Derecho. Pero si veo un verdadero riesgo que la lucha contra los terroristas, contra el crimen mas o menos organizado, contra la criminalidad en general – sea de jovenes, sea de extrajeros, sea de “managers” sea de trabajadores, sea lo que sea, pueden dañar hasta destruir los fundamentos de nuestros Estados (de Derecho) y sociedades (liberales). Lo que jo observo son gritos de batalla cada día más intensas, mas hostiles, es una percepción de inferioridad de la sociedad civil y del Estado de Derecho junto con una convicción irracional de la superioridad de nuestros “enemigos”.
Para demonstrar como o sistema penal vem sendo maximizado, Jorio
(2008, p. 188) criou um quadro comparativo que demonstra que está se
criando uma tendência de punir mais severamente crimes contra o
patrimônio contra crimes que atentam contra a vida, um dos mais
importantes bens jurídicos tutelados, senão vejamos:
Delito Patrimonial
|
Pena (Reclusão)
|
Outros Delitos
|
Pena (Reclusão)
|
Furto Simples. Apropriação indébita. Receptação Simples.
|
1 a 4 anos
|
Sequestro (liberdade individual)
|
1 a 3 anos
|
Estelionato
|
1 a 5 anos
|
Aborto consentido (vida)
Lesão Corporal grave (integridade física)
|
1 a 4 anos
1 a 5 anos
|
Furto qualificado
|
2 a 8 anos
|
Lesão corporal gravíssima (integridade física)
Tortura Simples – equiparado a hediondo (integridade física e moral)
|
2 a 8 anos
|
Receptação qualificada
|
3 a 8 anos
|
Tráfico de pessoas (costumes)
|
3 a 8 anos
|
Ou seja, a subtração de coisa alheia sem violência, recebe uma pena maior do que o sequestro e que
o furto qualificado (igualmente desprovido de violência à pessoa), é punido mais duramente do que a lesão corporal grave e em intensidade idêntica à da lesão corporal gravíssima. Pior do que isso: o furto qualificado recebe apenamento idêntico àquele destinado à tortura, crime hediondo por equiparação. Finalmente, à receptação qualificada foram impostas as mesmas penas previstas para o tráfico de pessoas. Tal postura do legislador revela que, em matéria de ‘contrabando’, não há diferença se o objeto material do crime é um ser humano ou um bem material. (JORIO, 2008, p. 188)
Nota-se que a seleção criminal não se refere somente ao direito penal em abstrato (ou seja, criminalização primária[4]), mas também à criminalização secundária[5], “oportunidade
na qual o Estado fará valer o seu jus puniendi, investigando,
processando e, por fim, condenando ao cumprimento de uma pena o
transgressor da lei penal editada anteriormente ao comportamento
delitivo” (GRECO, 2005, p. 158).
Para isto, basta observar o ordenamento penal brasileiro que possuí
uma infinidade de delitos contra o patrimônio, com penas iguais ou
maiores que crimes contra a vida, que são tão danosos ou mais e tutelam o
bem jurídico mais valioso, a vida. Através da manipulação das notícias,
os meios de comunicação aumentam os medos e induzem ao pânico,
reforçando uma falsidade a política criminal promovendo a criminalização
e repressão, ofertando ao sistema penal uma legitimação para uma
intervenção cada vez mais repressiva, criando um verdadeiro Estado
Penal.
Essa política de criminalização da miséria e desvalorização dos
grupos sociais faz com que aumentem os preconceitos e resultem na
produção de “uma imagem pública do delinqüente com componentes de classe social, étnicos, de gênero e estéticos” (ZAFFARONI et al, 2003, p. 46). E os meios de comunicação são parte essencial neste processo, pois “contribuem
para isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se às
sentenças com qualificações como ‘vagabundos’, chacais, etc.” (ZAFFARONI, 2001, p. 134).
Os meios de comunicação acabam por divulgar os ilícitos cometidos por
pessoas mais vulneráveis, como se fossem os únicos existentes na
sociedade, ocultando determinados ilícitos, criando uma realidade
parcial e levando o público a conclusões errôneas de que os criminosos
são menos favorecidos. Ou seja, apesar dos prejuízos dos crimes
ocultados (corrupção, desvio de dinheiro público, fraudes em licitações,
fraudes contra a previdência, lavagem de dinheiro, etc.) serem mais
danosos a sociedade, em face a influência dos meios de comunicação a
sociedade clama pela repressão aos crimes visíveis (furtos, roubos,
homicídios, estupros, lesões corporais), qual é objeto do “espetáculo
criminal midiático” noticiado diariamente nos jornais.
Bauman (1999, p. 133) sustenta que “o que se passa durante os
julgamentos de fraudadores de alto nível desafia as capacidades
intelectuais do leitor comum de jornais e, ademais, é abominavelmente
carente do drama que faz dos julgamentos de simples ladrões e assassinos
um espetáculo tão fascinante”.
Verifica-se portanto, que os meios de comunicação não colaboram
apenas para o processo de construção da imagem do inimigo (criminoso) –
no Brasil quase sempre como dos setores de baixa renda – mas também
auxilia na tarefa de eliminá-los, desconsiderando da ética e
justificando a opressão punitiva. Para que tudo isso seja possível, é
necessário disseminar a insegurança, derivada de medos profundos da
maleficência “humana” e dos malfeitores “desumanos”, medos geralmente
capitalizados em prol da repressão e em detrimento dos direitos e
garantias individuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Criminal e medo: os influxos das diferentes faces do risco. In: Revista da AJURIS, ano 39, nº 126, Porto Alegre: AJURIS, jun. 2012, p. 13-38.
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___________ et al. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1.
CITAÇÕES
[1] Ver: OST, François. O tempo do direito. Trad. Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget. 1999.
[2] Bode expiatório (tradução livre).
[3] Anitua (2003, p. 306) expõe que “algunos
individuos son utilizados por la sociedad para alcanzar el rechazo del
auto-reproche, transferido al objeto de hostilidad del exterior”.
[4]
Baratta (2002, p. 161) expõe que a criminalização primária consiste na
prática do legislador em escolher quais condutas serão consideradas
infrações. Consiste no momento em que as condutas desviadas não foram
internalizadas pelo cidadão. É a lei penal agindo sob o cidadão.
[5]
Baratta (2002, p.165) conclui ainda que, a criminalização secundária se
dá pela decorrência de problemas sociais causados pela estigmatização,
ou seja, no momento em que se identifica o acusado, este é rotulado pela
mídia, ficando assim também identificado perante a sociedade.
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