Por Salah H. Khaled Jr. e Alexandre Morais da Rosa
O Direito está repleto de conceitos que
desafiam as premissas mais básicas da racionalidade. Categorias que são
alheias para com a realidade e, como tais, capacitam as práticas
judiciárias para a destruição. São artefatos narrativos desprovidos de
sentido, mas que perversamente demarcam o sentido, garantindo a
continuidade da alienação nossa de cada dia. Formam as regras de bolso.
Mantras jurídicos.
É claro que alguns conceitos ou
princípios são claramente vocacionados para a maximização da barbárie,
como é o caso do princípio da verdade real.
Mas outros carregam consigo o não-dito,
ou seja, perpetuam mitos e demarcam horizontes compreensivos
comprometidos com a intensificação das práticas punitivas para muito
além do que Christie chamou de “razoável quantidade de crime”.
Se engana quem supõe que a racionalidade
tenha superado o mito com a modernidade. Como afirma Octavio Paz, “[…]
nossos mitos mudaram de forma e se chamam utopias políticas,
tecnológicas, eróticas”.
Portanto, os mitos não se restringem a
formas de inteligibilidade do mundo características de comunidades
tribais ou pejorativamente tidas como “primitivas”. A modernidade nos
legou um enorme conjunto de utopias. Dentre elas, de particular
relevância é a promessa de realização acabada de um paraíso terreno, com
a eliminação da criminalidade e consolidação última de segurança
absoluta da vida, da propriedade e de infinitos outros bens.
Nesse sentido, um dos maiores mitos
contemporâneos é sem dúvida a metafísica função de proteção de bens
jurídicos que é atribuída ao Direito Penal, enquanto obra do Legislador,
pai da mulher honesta (revogada na lei e presente na cabeça de muitos) e
objeto de adoração do homem médio, que acredita piamente na sua
capacidade para promover direitos humanos para humanos direitos.
Tudo isso soa como caricatura para
pessoas razoavelmente esclarecidas, que atentam para a complexidade das
coisas. Mas não é apenas uma fábula. É um conto em que se acredita e que
é relatado continuamente pelos professores a seus pupilos, que irão
reproduzir ideologicamente o mito de forma espiral, sem jamais cessar.
O mito sempre conforma uma narrativa
exemplar e pedagógica, que funda nossa cosmovisão e dá sentido à vida,
propondo uma estrutura significativa de compreensão que estabelece uma
tradição, perpetuada de geração a geração. Essa história se passa sempre
em um tempo que é um não-tempo, uma vez que não é um tempo datado, ou
seja, tempo cronológico, tempo do calendário. É um tempo de outra ordem.
Um tempo mítico, como é o tempo do contrato social e do jus puniendi.
O significado mais profundado do mito
geralmente não é (re)conhecido, mesmo por aqueles que ideologicamente o
reproduzem. Rotineiramente essa narrativa nos é apresentada com ares de
cientificidade. Somos apresentados ao Direito Penal como se ele fosse a
resposta racional à barbárie, concebido como ultima ratio e elaborado
pelo Legislador, que representaria a sociedade de forma neutra e
imparcial, zelando pelos bens jurídicos de todos de forma indistinta. O
texto deliberadamente esconde o caráter mítico e oculta a seletividade
do sistema penal: é performativo e visa constituir o leitor como leigo
diante de um saber que é apresentado como expressão absoluta da
verdade.
Mas vamos apelar aqui para a boa vontade
do leitor e reinvestir de sentido essas premissas: estamos às voltas
aqui com pensamento mágico. O processo de desencantamento do mundo a que
Weber se referia deve aqui ser compreendido a partir de outra dimensão
de sentido: o discurso científico ocupa o lugar do pensamento mágico e
reproduz as mesmas categorias, ainda que com outra linguagem. Não é por
acaso que Einstein disse que Deus é a lei e o legislador do universo: o
Legislador ocupa o lugar do divino na estrutura narrativa de
significação e legitimação do Direito moderno. Ele dá sentido ao mundo e
atribui finalidade e propósito ao comportamento do homem médio na
Terra, estabelecendo consequências sagradas para atos taxados de
profanos, através de um complexo processo de interação social em que o
crime é inventado como pecado.
Era uma vez… em uma terra encantada… um
mago encarregado da proteção de bens fundamentais da vida, chamado
Legislador. O Legislador zelava pelas condições básicas da vida
humana através do emprego de uma varinha mágica chamada Direito Penal,
que elevava tais bens da vida à condição de bens jurídicos, designando a
eles especial proteção. Com isso estabelecia uma cruzada pelo bem,
contra a maldade que aflorava no mundo.
As pessoas acreditavam no poder do
legislador e nas propriedades místicas da varinha por ele manejada.
Logo, era natural que pedissem que ele utilizasse cada vez mais o
Direito Penal, ampliando sua esfera de proteção. Afinal, não estava
enraízado no senso comum que o Direito Penal protegia? E se ele protegia
através da pena abstratamente cominada ao bem “protegido”, ou da pena
concretamente imposta a alguém que serve de exemplo para os demais, ou
mesmo reforçando nossos valores sociais, ou ressocializando o pecador (e
em último caso até mesmo o incapacitando) é natural que as pessoas
daquela comunidade subscrevessem a tais crenças e exigissem cada vez
mais Direito Penal. E de preferência, quanto mais intenso melhor:
praticamente todos depositivam suas esperanças de segurança na força do
castigo. Como o Legislador era bonzinho e amigo de todos, atendia
prontamente a tais pedidos, mesmo que os resultados fossem meramente
simbólicos. E assim seguia feliz o homem médio, celebrando e comemorando
o Direito Penal como instrumento de regulação social, que
tendencialmente ampliava cada vez mais sua desejável esfera de proteção,
assumindo até mesmo a responsabilidade de defesa das gerações futuras.
Afinal, o Direito Penal não podia deixar de enfrentar os novos desafios
da sociedade de risco: o pecado adquiria dimensões cada vez maiores,
exigindo incisiva atuação do sagrado mecanismo de proteção.
A felicidade seria total e completa, se
não fosse pela existência de alguns hereges, que insistiam em suas vãs
tentativas de profanar o Direito Penal, retirando dele suas propriedades
mágicas. Ousavam duvidar da sabedoria do Legislador e da Providência
que guiava sua mão: insistiam que a atribuição de uma função positiva
(de tutela de bens jurídicos) ao Direito Penal era um grande erro, dado a
produzir inúmeros danos. Afirmavam que o Direito Penal se apoiava em
falsos dados sociais (curiosamente desclassificando as críticas a ele
próprio como sociológicas) e que para além das funções manifestas que
eram atribuídas a pena, havia um conjunto de perversas funções latentes.
Ousavam dizer que a legislação penal era um ato de poder do Estado e
que era preciso conter o poder punitivo, algo muito diferente da
legitimação que era dada ao que chamavam de “pretenso direito de punir”.
E finalmente, ousavam dizer que muitas vezes o Direito Penal não era
nem sequer utilizado com a tal intenção de proteção pelo Legislador,
pois o que interessava era o efeito simbólico, ou seja, a ilusória
satisfação que a população experimentava através do manejo da varinha de
condão, reforçando a crença no caráter mágico da legislação penal e na
bondade do poder punitivo. Afirmavam que os problemas eram de outra
ordem e que utilização do Direito Penal pouco contribuiria para a
resolução de problemas endêmicos e constitutivos do tecido social.
Felizmente, de praticamente nada
adiantava esse esforço de profanação. O homem médio demonstrava
resiliência tenaz diante da insurgência herética. E assim todos viveram
felizes. O mito resiste. Para sempre…
Como explicar isso se a estrutura do
pensamento é fundamentalmente incoerente e sob muitos aspectos até mesmo
irracional? Como explicar seu enorme poder de adesão, sobrevivência e
reprodução?
Uma explicação possível consiste no fato
de que não é clara a verdadeira linguagem e mensagem do mito. Como
afirma Paz, “o mito opera com a linguagem como se esta fosse um sistema
pré-significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras do
mito”.
Outra explicação para o poder de
convencimento do mito pode ser encontrada na sua condição de verdade: o
mito traz respostas sem jamais formular explicitamente os problemas. Há
uma função de verdade, mas de uma verdade que é formulada indiretamente,
o que diferencia o mito da ciência e da filosofia, pois, conforme Paz,
“no mito se desenvolve uma lógica que não se defronta com a realidade e
sua coerência é meramente formal; na ciência a teoria deve submeter-se a
prova da experimentação; na filosofia, o pensamento é crítico”.
Para além dos devaneios que povoam a
mente do homem médio, é preciso deixar de lado o apego romântico ao
projeto civilizatório moderno: reconhecer que a promessa de realização
do ideal de segurança absoluta não pode ser mais do que mera ilusão. Em
outras palavras, o elemento violência é constitutivo da própria vida em
sociedade: não é um resto bárbaro do passado que será necessariamente
extinto pela civilização.
Portanto, embora a violência possa
assumir várias formas, não é possível concebê-la concretamente como
aberração a ser erradicada por completo, mesmo que isso possa ser
desejável: são padrões de comportamento que não estão à margem da
cultura, mas que a compõem, como um de seus elementos nucleares.
A utilização desmedida do Direito Penal
para combater o que ele não pode extinguir apenas produz mais violência:
nada destruiu mais bens jurídicos nos últimos séculos do que o poder
punitivo, que não tem aptidão para o bem, ao contrário do que muitos
ingenuamente creem.
A estrutura de pensamento continuamente
reproduz de forma velada as mesmas premissas autoritárias que demarcam
nossas práticas punitivas nos últimos séculos e que continuamente são
reiteradas, garantindo a sobrevivência de traços medievais, travestidos
de cientificidade: em última análise, o que está em jogo é a legitimação
discursiva da autoridade, que ainda remete aos parâmetros das
monarquias absolutistas ocidentais. Como observa Marilena Chaui, um mito
fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para
exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que,
quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si
mesmo.
Sua aparente mutabilidade não é mais do
que a continuada reafirmação de sua própria e tautológica “verdade”.
Para Chauí, no sentido antropológico, o mito é uma solução imaginária
para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para
serem resolvidos na realidade. De forma que “a força persuasiva dessa
representação transparece quando a vemos em ação, isto é, quando resolve
imaginariamente uma tensão real e produz uma contradição que passa
desapercebida”.
O mito do Legislador e a crença na sua
bondade tem sua serventia. E porque atendem a um propósito claro,
continuarão a prosperar, a não ser que as pessoas estejam dispostas a
acordar. Para isso é preciso deixar de lado a abstração e atentar para
as condições concretas de produção da legislação penal, desidentificar
Direito Penal e ato de poder legislativo estatal e conceber estratégias
de enfrentamento discursivo com o programa punitivo. E isso não se faz
com pensamento mágico e louvor ao poder punitivo. Profanar é preciso!
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