Por Salah H. Khaled Jr.
// Colunista Just
Desde pequenos somos confrontados com o medo. Sua serventia é
notória: o medo ensina, subjuga e disciplina. É uma ferramenta
extremamente útil para o controle de corpos insurgentes. Substitui com
ilusória facilidade o diálogo e pode conseguir – ainda que de forma
passageira – os resultados desejados.
Quase tão universal quanto o Papai Noel, o Velho do Saco é uma figura
sinistra do folclore popular, cuja gênese é imemorial. Utilizado como
recurso retórico para amedrontar crianças desobedientes, é invocado em
países como Brasil, Argentina, Chile, Portugal e Espanha. Crianças
malcriadas e desobedientes são rotineiramente ameaçadas. Caso não se
comportem, serão levadas pelo Velho, que posteriormente irá devorá-las.
No Leste Europeu a figura é ainda mais sinistra: é um demônio que
carrega o saco e rapta infantes rebeldes. Em alguns casos o Velho é
associado com o conhecido “monstro embaixo da cama” ou até mesmo com o
próprio demônio. Em outros, é apresentado como se fosse o Papai Noel,
com uma pequena diferença: ele não se contenta em recompensar crianças
bondosas, leva embora as malvadas. O Velho é tão onipresente e
onisciente quanto o próprio Papai Noel, com um diferencial: enquanto o
segundo recompensa as crianças boas somente no Natal, o Velho do Saco
trabalha o ano inteiro: capturar crianças é um full-time job. Milhares delas desaparecem pelo mundo afora todos os dias dentro de um imenso saco sem fundo.
O Velho do Saco é um artifício normativo útil: representa uma espécie
de coação psicológica que através do medo pode fazer com que apavoradas
mentes infantis se curvem diante dos ditames dos pais. Vendido como
retribuição inevitável e inescapável, o Velho expressa uma justiça
implacável e infalível, sem igual neste mundo. Obviamente, é uma ameaça
que jamais se concretiza – salvo melhor juízo (!) – o que significa que
dificilmente tem eficácia por muito tempo, ainda que possa provocar
reflexos indesejados como traumas e inclusive medo de pessoas idosas. De
qualquer modo, é difícil crer que mesmo pais impiedosos realmente
possam desejar que o Velho do Saco leve seus filhos embora e que eles se
transformem em prato cheio para seu insaciável apetite.
Percebe-se que existe uma complementaridade maniqueísta na oposição
entre o Papai Noel e o Velho do Saco: se para crianças boazinhas o saco
estará repleto de presentes, para crianças malvadas o saco representa
algo bem diferente. Pensamos em termos absolutos e ensinamos a pensar em
termos absolutos. Desde a infância ingressamos em um sistema normativo
repleto de exigências: mandamentos, proibições e sanções são parte
integrante e até mesmo essencial da vida social.
Todos sabem que o sistema de castigo e recompensa é um dos recursos
mais utilizados pelos pais na educação dos filhos. A punição cumpre
função normativa e se expressa como violência concreta e simbólica
contra o outro. Ainda são comuns castigos físicos, xingamentos e até
mesmo isolamento celular: o terrível hábito de trancar crianças em
quartos escuros. Tais são as faces mais agudas dos métodos utilizados
por certos pais para disciplinar os filhos desobedientes. Recursos
extremos e reservados para casos mais graves, dirão alguns. O fato é que
desde muito cedo tomamos contato com o poder punitivo, seja como
discurso ou como prática que se insinua sobre a nossa integridade física
e a nossa liberdade. Tudo se torna aceitável quando o diálogo falha, ou
pior ainda, quando sequer se tenta: a ultima ratio facilmente vira prima ratio.
Se crianças rebeldes têm irmãos comportados, a situação se agrava
ainda mais: serão sempre confrontados e julgados com base no irmão
obediente, que acaba se tornando um paradigma de bondade. O jovem homem
de bem dita o tom, voluntária ou involuntariamente. Aprende a desfrutar
das vantagens que sua condição privilegiada lhe dá. Representa a
normalidade enquanto o insubordinado é um fator contínuo de distúrbio e
perturbação. Claro que muitos desses pequenos homens de bem são
criaturas astutas e dissimuladas: embora apresentem uma aparência
imaculada, muitas vezes são eles próprios violadores de regras que nunca
são descobertos.
De qualquer modo, desde pequenos aprendemos a pensar com base nesse
tipo de dicotomia: rotulamos, estigmatizamos e etiquetamos crianças com
incrível facilidade, inclusive em ambientes escolares. Espelhos de
classe definem lugares e separam crianças “problemáticas” umas das
outras. A face mais perversa do processo classificatório é a
medicalização: a ritalina transformou-se em uma espécie de salvação para
a perturbação provocada por crianças em escolas. Para quem é adepto do
controle, “déficit de atenção e hiperatividade” conforma o diagnóstico
chave para a manutenção da ordem, continuamente ameaçada por esses
corpos inquietos. Se não são maus, são doentes. A lógica classificatória
sempre triunfa. A própria avaliação escolar também é estruturada em
torno do sistema de castigo e recompensa, que por sua vez provoca
reflexos no ambiente familiar: boas notas rendem elogios e presentes,
enquanto notas ruins geram castigos e restrições. O sistema normativo
continuamente vai sendo ampliado e, como sempre, estruturado em torno da
ameaça de manifestação do poder punitivo. Assim começa o adestramento
para a vida em sociedade. Disciplina, sujeição, ameaça, castigo e
medicalização. Convivemos com isso desde criancinhas. Somos submetidos a
um longo e extensivo processo de formatação para a vida.
A
cenoura é pendurada diante do burro e ele deve andar. Se o burro não
sai do lugar, laço nele. Como somos mais espertos que os burros, de vez
em quando ganhamos algumas cenouras. Mas nada de bancar o diferente.
Marche no ritmo que todo mundo marcha e eventualmente você será
recompensado. Desvie-se dos trilhos e serás duramente ameaçado,
estigmatizado e repreendido. A história está repleta de inovadores que
foram para a fogueira. Insubordinados que não se curvaram diante das
regras estabelecidas.
Não é por acaso que temos um fascínio tão grande pelo poder punitivo.
O contato com ele praticamente coincide com a nossa efetiva entrada no
mundo da linguagem. Nosso inocente “mamãe” representa um bilhete de
acesso para um imenso sistema normativo, cuja extensão somente se
tornará clara após um longo e extenuante processo de socialização.
Aprendemos a acreditar nele. A assumir a sua bondade. A pensar que a
ameaça e a imposição de castigos têm virtudes inigualáveis para a
realização de inúmeros fins nobres.
E como historicamente demos crédito a isso, instituímos um grande
sistema de controle social. Se ele realmente fosse perfeito enquanto
mecanismo de sujeição dos corpos, viveríamos em uma sociedade que
desconheceria a mudança: todos seríamos servos do mesmo e diariamente
nos dedicaríamos a sua reprodução ideológica. Teríamos chegado ao fim da
história. E pasmem: alguns realmente acreditam que já chegamos.
Mas imagino que você deve estar se perguntando. Que diabos isso tem a
ver com o Direito Penal? Esta não é uma coluna jurídica? Terá o Salah
enlouquecido de vez? Não que faltasse muito, mas é surpreendente que
isso tenha ocorrido de forma tão repentina. Duas semanas atrás ele
parecia tão normal, falando sobre o Exame da OAB… (veja aqui)
Talvez. Mas existe um ponto para o argumento, ou pelo menos eu espero
que exista. Vamos retornar ao princípio da coluna. Faça um exercício de
abstração. Imagine que o Velho do Saco é real. Não é apenas um mito
para assustar criancinhas. Ele de fato existiu e por isso está presente
no folclore de tantas culturas distintas. Imagine que após um longo
período de ausência, ele está retonando a este mundo. Mas não é o mesmo
Velho de antigamente. Ele terá um novo propósito. Será o braço forte da
Lei, The Strong Arm of the Law, como dizem os americanos e
ingleses. Caberá a ele zelar pelo cumprimento rigoroso e expediente da
Lei Penal: o Velho do Saco se encarregará de efetivamente garantir que a
ameaça seja levada a sério, pois sempre será cumprida. Com ele
poderemos abandonar definitivamente o processo, esse ritual lento e
contraproducente que apenas retarda o inevitável e, no pior dos casos,
consagra a impunidade.
Teremos uma justiça irresistível, instantânea e implacável. O poder
do Velho não é deste mundo. Não é possível negar a responsabilidade por
qualquer ato: o Velho tudo sabe. Não é possível escapar do velho: ele
está em todos os lugares. E não é possível resistir ao Velho: os meios
disponíveis aos homens são incapazes de barrar uma força da natureza
como ele. Encha o Velho de balas e ele gargalhará na sua cara. Pensando
bem, muitos juízes gostariam de ter tais poderes. Alguns deles inclusive
pensam que os tem, não verdade? Mas diferentemente deles, o Velho é pra
valer.
O único problema é que ninguém conseguirá convencer o Velho de que
seu papel redefinido exigiria que ele apenas transportasse os culpados
para as suas respectivas celas. Os capturados por ele continuariam a ser
o pasto do qual ele se sempre se alimentou. Claro que muitos não teriam
qualquer problema com isso. Uma abordagem econômica inclusive
recomendaria que fosse assim. Desse modo deixaríamos de desperdiçar
recursos com presídios. Os culpados simplesmente cessariam de existir e
sem que fosse preciso fazer qualquer sujeira. Tudo muito higiênico. Não
geraria nenhum problema logístico como o que fazer com os cadáveres no
Holocausto, por exemplo.
Entraríamos em um novo estágio: assim como a sociedade disciplinar se
tornou sociedade do controle e, quem sabe, do espetáculo, finalmente
chegaríamos ao estágio final: a sociedade do medo, regida por um poder
punitivo absolutamente infalível. O único problema é que todos somos
crianças malvadas, como qualquer estudante de criminologia sabe. E o
velho acabaria com a seletividade do sistema penal. Finalmente o mito do
Direito Penal igualitário encontraria correspondência na realidade. E o
resultado final, qual seria? Considerando a infinitude do catálogo
humano de mandamentos e proibições, é provável que novamente eu tenha me
deparado com uma hipótese de fim da vida na Terra, como na coluna
passada (veja aqui).
Encerro com um alerta. Cuidado. O Velho do Saco está de olho. O
próximo a ser capturado pode ser você. Comece a olhar por cima do ombro.
Quando você menos esperar ele pode estar lá, criança malcriada. Não
diga que eu não avisei.
Boa semana!
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em
Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor da
Faculdade de Direito e do Mestrado em Direito e Justiça Social da
Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Autor de A Busca da Verdade
no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas,
2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do
Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014. É
Conselheiro Editorial do Justificando.
Fonte: http://justificando.com/2015/03/17/o-velho-do-saco-e-a-seducao-do-poder-punitivo-somos-todos-criancas-malvadas/
Fonte: http://justificando.com/2015/03/17/o-velho-do-saco-e-a-seducao-do-poder-punitivo-somos-todos-criancas-malvadas/
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