segunda-feira, 13 de abril de 2015

O Velho do Saco e a sedução do poder punitivo: somos todos crianças malvadas

Por Salah H. Khaled Jr.

// Colunista Just

Desde pequenos somos confrontados com o medo. Sua serventia é notória: o medo ensina, subjuga e disciplina. É uma ferramenta extremamente útil para o controle de corpos insurgentes. Substitui com ilusória facilidade o diálogo e pode conseguir – ainda que de forma passageira – os resultados desejados.


Quase tão universal quanto o Papai Noel, o Velho do Saco é uma figura sinistra do folclore popular, cuja gênese é imemorial. Utilizado como recurso retórico para amedrontar crianças desobedientes, é invocado em países como Brasil, Argentina, Chile, Portugal e Espanha. Crianças malcriadas e desobedientes são rotineiramente ameaçadas. Caso não se comportem, serão levadas pelo Velho, que posteriormente irá devorá-las. No Leste Europeu a figura é ainda mais sinistra: é um demônio que carrega o saco e rapta infantes rebeldes. Em alguns casos o Velho é associado com o conhecido “monstro embaixo da cama” ou até mesmo com o próprio demônio. Em outros, é apresentado como se fosse o Papai Noel, com uma pequena diferença: ele não se contenta em recompensar crianças bondosas, leva embora as malvadas. O Velho é tão onipresente e onisciente quanto o próprio Papai Noel, com um diferencial: enquanto o segundo recompensa as crianças boas somente no Natal, o Velho do Saco trabalha o ano inteiro: capturar crianças é um full-time job. Milhares delas desaparecem pelo mundo afora todos os dias dentro de um imenso saco sem fundo.

O Velho do Saco é um artifício normativo útil: representa uma espécie de coação psicológica que através do medo pode fazer com que apavoradas mentes infantis se curvem diante dos ditames dos pais. Vendido como retribuição inevitável e inescapável, o Velho expressa uma justiça implacável e infalível, sem igual neste mundo. Obviamente, é uma ameaça que jamais se concretiza – salvo melhor juízo (!) – o que significa que dificilmente tem eficácia por muito tempo, ainda que possa provocar reflexos indesejados como traumas e inclusive medo de pessoas idosas. De qualquer modo, é difícil crer que mesmo pais impiedosos realmente possam desejar que o Velho do Saco leve seus filhos embora e que eles se transformem em prato cheio para seu insaciável apetite.

Percebe-se que existe uma complementaridade maniqueísta na oposição entre o Papai Noel e o Velho do Saco: se para crianças boazinhas o saco estará repleto de presentes, para crianças malvadas o saco representa algo bem diferente. Pensamos em termos absolutos e ensinamos a pensar em termos absolutos. Desde a infância ingressamos em um sistema normativo repleto de exigências: mandamentos, proibições e sanções são parte integrante e até mesmo essencial da vida social.

Todos sabem que o sistema de castigo e recompensa é um dos recursos mais utilizados pelos pais na educação dos filhos. A punição cumpre função normativa e se expressa como violência concreta e simbólica contra o outro. Ainda são comuns castigos físicos, xingamentos e até mesmo isolamento celular: o terrível hábito de trancar crianças em quartos escuros. Tais são as faces mais agudas dos métodos utilizados por certos pais para disciplinar os filhos desobedientes. Recursos extremos e reservados para casos mais graves, dirão alguns. O fato é que desde muito cedo tomamos contato com o poder punitivo, seja como discurso ou como prática que se insinua sobre a nossa integridade física e a nossa liberdade. Tudo se torna aceitável quando o diálogo falha, ou pior ainda, quando sequer se tenta: a ultima ratio facilmente vira prima ratio.

Se crianças rebeldes têm irmãos comportados, a situação se agrava ainda mais: serão sempre confrontados e julgados com base no irmão obediente, que acaba se tornando um paradigma de bondade. O jovem homem de bem dita o tom, voluntária ou involuntariamente. Aprende a desfrutar das vantagens que sua condição privilegiada lhe dá. Representa a normalidade enquanto o insubordinado é um fator contínuo de distúrbio e perturbação. Claro que muitos desses pequenos homens de bem são criaturas astutas e dissimuladas: embora apresentem uma aparência imaculada, muitas vezes são eles próprios violadores de regras que nunca são descobertos.

De qualquer modo, desde pequenos aprendemos a pensar com base nesse tipo de dicotomia: rotulamos, estigmatizamos e etiquetamos crianças com incrível facilidade, inclusive em ambientes escolares. Espelhos de classe definem lugares e separam crianças “problemáticas” umas das outras. A face mais perversa do processo classificatório é a medicalização: a ritalina transformou-se em uma espécie de salvação para a perturbação provocada por crianças em escolas. Para quem é adepto do controle, “déficit de atenção e hiperatividade” conforma o diagnóstico chave para a manutenção da ordem, continuamente ameaçada por esses corpos inquietos. Se não são maus, são doentes. A lógica classificatória sempre triunfa. A própria avaliação escolar também é estruturada em torno do sistema de castigo e recompensa, que por sua vez provoca reflexos no ambiente familiar: boas notas rendem elogios e presentes, enquanto notas ruins geram castigos e restrições. O sistema normativo continuamente vai sendo ampliado e, como sempre, estruturado em torno da ameaça de manifestação do poder punitivo. Assim começa o adestramento para a vida em sociedade. Disciplina, sujeição, ameaça, castigo e medicalização. Convivemos com isso desde criancinhas. Somos submetidos a um longo e extensivo processo de formatação para a vida.

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A cenoura é pendurada diante do burro e ele deve andar. Se o burro não sai do lugar, laço nele. Como somos mais espertos que os burros, de vez em quando ganhamos algumas cenouras. Mas nada de bancar o diferente. Marche no ritmo que todo mundo marcha e eventualmente você será recompensado. Desvie-se dos trilhos e serás duramente ameaçado, estigmatizado e repreendido. A história está repleta de inovadores que foram para a fogueira. Insubordinados que não se curvaram diante das regras estabelecidas.


Não é por acaso que temos um fascínio tão grande pelo poder punitivo. O contato com ele praticamente coincide com a nossa efetiva entrada no mundo da linguagem. Nosso inocente “mamãe” representa um bilhete de acesso para um imenso sistema normativo, cuja extensão somente se tornará clara após um longo e extenuante processo de socialização. Aprendemos a acreditar nele. A assumir a sua bondade. A pensar que a ameaça e a imposição de castigos têm virtudes inigualáveis para a realização de inúmeros fins nobres.

E como historicamente demos crédito a isso, instituímos um grande sistema de controle social. Se ele realmente fosse perfeito enquanto mecanismo de sujeição dos corpos, viveríamos em uma sociedade que desconheceria a mudança: todos seríamos servos do mesmo e diariamente nos dedicaríamos a sua reprodução ideológica. Teríamos chegado ao fim da história. E pasmem: alguns realmente acreditam que já chegamos.

Mas imagino que você deve estar se perguntando. Que diabos isso tem a ver com o Direito Penal? Esta não é uma coluna jurídica? Terá o Salah enlouquecido de vez? Não que faltasse muito, mas é surpreendente que isso tenha ocorrido de forma tão repentina. Duas semanas atrás ele parecia tão normal, falando sobre o Exame da OAB… (veja aqui)

Talvez. Mas existe um ponto para o argumento, ou pelo menos eu espero que exista. Vamos retornar ao princípio da coluna. Faça um exercício de abstração. Imagine que o Velho do Saco é real. Não é apenas um mito para assustar criancinhas. Ele de fato existiu e por isso está presente no folclore de tantas culturas distintas. Imagine que após um longo período de ausência, ele está retonando a este mundo. Mas não é o mesmo Velho de antigamente. Ele terá um novo propósito. Será o braço forte da Lei, The Strong Arm of the Law, como dizem os americanos e ingleses. Caberá a ele zelar pelo cumprimento rigoroso e expediente da Lei Penal: o Velho do Saco se encarregará de efetivamente garantir que a ameaça seja levada a sério, pois sempre será cumprida. Com ele poderemos abandonar definitivamente o processo, esse ritual lento e contraproducente que apenas retarda o inevitável e, no pior dos casos, consagra a impunidade.

Teremos uma justiça irresistível, instantânea e implacável. O poder do Velho não é deste mundo. Não é possível negar a responsabilidade por qualquer ato: o Velho tudo sabe. Não é possível escapar do velho: ele está em todos os lugares. E não é possível resistir ao Velho: os meios disponíveis aos homens são incapazes de barrar uma força da natureza como ele. Encha o Velho de balas e ele gargalhará na sua cara. Pensando bem, muitos juízes gostariam de ter tais poderes. Alguns deles inclusive pensam que os tem, não verdade? Mas diferentemente deles, o Velho é pra valer.

O único problema é que ninguém conseguirá convencer o Velho de que seu papel redefinido exigiria que ele apenas transportasse os culpados para as suas respectivas celas. Os capturados por ele continuariam a ser o pasto do qual ele se sempre se alimentou. Claro que muitos não teriam qualquer problema com isso. Uma abordagem econômica inclusive recomendaria que fosse assim. Desse modo deixaríamos de desperdiçar recursos com presídios. Os culpados simplesmente cessariam de existir e sem que fosse preciso fazer qualquer sujeira. Tudo muito higiênico. Não geraria nenhum problema logístico como o que fazer com os cadáveres no Holocausto, por exemplo.

Entraríamos em um novo estágio: assim como a sociedade disciplinar se tornou sociedade do controle e, quem sabe, do espetáculo, finalmente chegaríamos ao estágio final: a sociedade do medo, regida por um poder punitivo absolutamente infalível. O único problema é que todos somos crianças malvadas, como qualquer estudante de criminologia sabe. E o velho acabaria com a seletividade do sistema penal. Finalmente o mito do Direito Penal igualitário encontraria correspondência na realidade. E o resultado final, qual seria? Considerando a infinitude do catálogo humano de mandamentos e proibições, é provável que novamente eu tenha me deparado com uma hipótese de fim da vida na Terra, como na coluna passada (veja aqui).

Encerro com um alerta. Cuidado. O Velho do Saco está de olho. O próximo a ser capturado pode ser você. Comece a olhar por cima do ombro. Quando você menos esperar ele pode estar lá, criança malcriada. Não diga que eu não avisei.
Boa semana!


Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor da Faculdade de Direito e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014.  É Conselheiro Editorial do Justificando.

Fonte: http://justificando.com/2015/03/17/o-velho-do-saco-e-a-seducao-do-poder-punitivo-somos-todos-criancas-malvadas/

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