Por Thiago M. Minagé e João Gabriel M. C. Melo
Em sala de aula, sempre afirmo que, não podemos ficar à mercê do
bom policial, do bom promotor, do bom juiz, devemos ter instrumentos de
contenção do exercício do poder para garantir que independente de quem
esteja exercendo o poder possa ser controlado principalmente de si
mesmo. Afirmo isso, não no intuito de afrontar ou mesmo polemizar,
mas para mostrar aos alunos que todos, sem exceção, exercem funções
importantes em um Estado Democrático de Direito, e todos devem estar
submetidos a regras de controle conforme determina a Constituição de
1988. Atualmente vivemos um momento delicado no qual os discursos estão
cada vez mais inflados de modo a suscitar a ira naqueles que desconhecem
as causas nas quais se inserem. São diretamente afetados e convencidos
por essas palavras proferidas como armas, o que nos leva a
circunstâncias preocupantes, uma vez que temos pessoas lutando e falando
qualquer coisa sobre qualquer coisa[3].
A influência midiática na manipulação de informações e formação de
opiniões está cada vez mais forte, dados processuais e investigativos
são expostos de forma “exclusiva” por parte da mídia, sem mesmo as
partes do processo, terem acesso às informações. Pessoas criminalizadas e
violações de preceitos fundamentais de proteção da pessoa humana são
nitidamente deixados de lado em nome da pseudo “reportagem
investigativa”. Ora, me poupem dessa balela!
TEORIA GARANTISTA ALÉM DO SENSO COMUM
Há quem defenda que os direitos humanos protegem apenas os criminosos
(vulgo direitos dos manos – exposto pela própria página da PMERJ em
rede social), o que não pode ser tomado como uma verdade. Por outro
lado, há também quem diga que as garantias constitucionais penais
favorecem a poucos, restringindo-se àqueles que podem custear uma defesa
especializada. O garantisto penal, comparado equivocadamente aos
direitos humanos, não é exclusivo à classe “A”, “B” ou “C”. Os direitos e
garantias fundamentais elencados na Carta Magna agasalham a todos.
No que tange os direitos humanos, tem-se que estes possuem caráter
supranacional, inseridos em tratados internacionais para designar
pretensões de respeito à pessoa humana, resguardando posições essenciais
aos indivíduos.
Quanto aos direitos fundamentais, ou garantias constitucionais,
inscritos em diplomas normativos de cada Estado, são direitos que vigem
numa ordem jurídica concreta, limitando-se no tempo e no espaço de
acordo com cada ordenamento jurídico.
Tal perspectiva teórica encontra esteio na Constituição Federal,
devidamente baseada na dignidade da pessoa humana e nos direitos
fundamentais, que devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob
pena de deslegitimação democrática da ação. Mas ainda no século XXI se
encaixam as palavras de Einstein: “que época triste essa nossa, em que é
mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo” [4].
Importante destacar que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade[5]. O processo penal não pode ser encarado como um instrumento a serviço do ius puniendi do Estado, e sim como um limitador deste poder e garantidor dos direitos do indivíduo a ele submetido.
Adentrando no modelo garantista, o significante “garantia” dá a ideia
de uma posição que afirma a segurança do mais frágil. Garantir é,
portanto, proteger quem necessita e no contexto processual criminal essa
posição não é ocupada apenas por aquele que teve seu direito atingido,
mas principalmente a quem o violou. Salo de Carvalho sintetiza ao dizer:
“a máxima felicidade possível para maioria não desviante e o mínimo
sofrimento necessário para minoria desviante”[6].
Em uma entrevista concedida à Fauzi Hassan Choukr, Ferrajoli afirmou que: “Garantismo é antes de tudo um modelo de direito” [7].
Dentro desse contexto significa dizer que se trata de uma submissão à
lei constitucional, à qual todos deverão ser sujeitados, não sendo
possível vinculá-lo a qualquer soberania interna de poderes
institucionalizados, uma vez que essa noção de soberania foi dissolvida
pelo constitucionalismo. E continua o raciocínio no sentido de que
“todos os poderes estão submetidos à vontade da lei que transformará os
direitos fundamentais em direito constitucional interno” [8].
Concluindo a entrevista, com base em Ferrajoli diz ser necessário,
antes de tudo, “recordar que o garantismo nasce no âmbito dos direitos
individuais, na tradição iluminista, como forma de limite ao poder
soberano estatal (liberdades pessoais, de consciência etc.)” [9].
Já na década de 90, Nilo Batista percebeu a importância de discutir o
tema defendendo que se alguém cometer um crime, seja ele qual for,
deverá ser processado e julgado, e ressalta que os “direitos humanos”
não coíbem a justa punição. Contudo, não há que ser tolerado o
desrespeito aos direitos deste indivíduo e até mesmo o de seus
familiares[10]. É preciso compreender que não se
busca apenas frisar os princípios e fundamentos constitucionais,
busca-se, na medida do possível, uma harmonia entre a aplicação do poder
coercitivo estatal e a real necessidade criminológica. Ao contrário da
doutrina penal tradicional, a finalidade do sistema garantista não é a
retribuição do mal praticado ou a prevenção de novos delitos, mas a
contenção do arbítrio do Estado-administração, do Estado-juiz e, ainda,
da própria população[11].
Esta ideia é corroborada por Paulo Bonavides, quando este diz que há
dois polos ao redor dos quais giram as garantias: o indivíduo e a
liberdade[12]. Pode-se afirmar, portanto, que se
trata de um binômio que deve ser observado em conjunto com as indagações
acima propostas por Ferrajoli.
Todavia, todo esse discurso teórico e jus filosófico é ignorado e
considerado utópico pela sociedade atual. Encara-se como uma visão
idealista e, por vezes, inocente da realidade. Neste sentido, Geraldo
Prado defende que “o garantismo não é uma religião e seus defensores
não são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema
incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal virtude consiste em
reivindicar uma renovada racionalidade, baseada em procedimentos que
têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder”[13].
Vem se difundindo no Brasil a ideia que quanto mais condutas forem
criminalizadas, quanto maior for o rigor da lei penal e quanto mais
repressivo for o Estado em suas políticas de segurança pública, menor
será o índice de criminalidade. A sociedade cultua a política norte
americana de Lei e ordem, que adota teorias totalitárias e clama pelo
direito criminal. Mas será esse o melhor caminho a ser seguido ou se
trata de uma forma mais econômica e prática politicamente? No estudo do
direito penal, à luz do Garantismo e da Constituição, crê-se
sinceramente que o futuro não depende do direito penal.
Quanto à indagação feita acima, muito bem preleciona Zaffaroni e desenvolvida por Diego Bayer[14]: “O
aumento de penas abstratas oferecidas pela hipocrisia dos políticos,
que não sabem o que propor, não têm espaço para propor, não sabem ou não
querem mudar a realidade” [15]. E segue afirmando que: “Como não têm espaço para modificar a realidade, fazem o que é mais barato: leis penais” [16]. Sendo assim, Aury Lopes Jr. afirma que “A
ideia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente
ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome
da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a
violência” [17].
Impende ressaltar que a famosa impunidade não ocorre por falta de
rigor da lei penal, tampouco por sua escassez. O problema ultrapassa os
limites da ciência criminal, podendo ser tratado de forma muito mais
eficaz através do comprometimento com as políticas sociais ou por outros
ramos do direito, como o direito administrativo e o civil.
Neste ínterim destaca-se o esquecido princípio da intervenção mínima, conhecido também como ultima ratio,
adotado pelo direito pátrio, que responde com muita propriedade o já
citado clamor pela criminalização de condutas. Seja muito bem frisado
que esse princípio, nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt: “orienta
e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a
criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio
necessário para a proteção de determinado bem jurídico”[18]. E segue explicando que: “Se
outras formas de sanções ou outros meios de controle social
revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização
será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem
jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são
estas que devem ser empregadas e não as penais”[19].
Certo é que os princípios constitucionais penais precisam ser melhor
compreendidos e mais aplicados. Contudo, retomando a frase de Einstein, é
preciso romper com o preconceito e com a pressa quanto ao estudo desta
temática.
Prisão Preventiva pelo fundamento de ordem pública:
Repassando algumas situações emblemáticas, o caso do cinegrafista
Santiago Andrade e a fundamentação da prisão preventiva dos acusados
pelo motivo de “garantia de ordem pública”, demonstra o motivo pelo qual
a doutrina, quase que majoritariamente, critica esse requisito.
Trata-se do requisito mais amplo, genérico e indeterminado de nosso
ordenamento jurídico para decretação de prisão preventiva, gerando
inevitável insegurança decorrente da análise da conveniência ou não da
adoção da medida constritiva cautelar [20]. Tendo
em vista tamanha brecha legislativa, a jurisprudência vem dando inúmeras
interpretações, ora por “comoção social”, “periculosidade do réu”,
“para preservar sua integridade” do autor do delito, até “perversão do
crime”, “clamor público”, “repercussão midiática” e “tudo que não serve
como base ou requisito para decretação de prisão preventiva é utilizado
como sinônimo de “ordem pública”, a fim de validar e justificar o
decreto prisional provisório”[21].
Seguindo a mesma linha de raciocínio Eugênio Pacelli diz que a “garantia de ordem pública” é “o calcanhar de Aquiles do processo penal brasileiro” [22].
E no caso do cinegrafista não foi diferente. Na falta de outra
fundamentação, diante de tamanha pressão midiática e enorme apelo
popular pela prisão dos acusados, o magistrado se valeu do grande
“coringa” para fundamentar sua decisão e converter a prisão temporária
em preventiva. Todavia, como dito anteriormente, o juiz se valeu de uma
longa retórica alegando que os direitos individuais elencados na Carta
Magna não podem superar os direitos coletivos, justificando, desta
forma, a prisão. Preciso o ensinamento de Aury Lopes Jr. ao afirmar que o
argumento “recorrente em matéria penal é o de que direitos
individuais devem ceder (e, portanto, serem sacrificados) frente à
“supremacia” do interesse público. É uma manipulação discursiva que faz
um maniqueísmo grosseiro (senão interesseiro) para legitimar e pretender
justificar o abuso de poder” [23].
Nesta sexta 18 de Julho de 2014, em sua decisão, o Juiz de Direito
Flávio Itabaiana decretou a prisão preventiva, afirmando que esta que
poderia perdurar até o julgamento, com base na garantia da ordem pública
qualificando o grupo de ativistas como perigoso. “Está presente uma
das hipóteses previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal, que
autoriza a decretação da prisão preventiva, qual seja, a garantia da
ordem pública. Tal hipótese se encontra presente em virtude da
periculosidade dos acusados, evidenciada por terem forte atuação na
organização e prática de atos de violência nas manifestações populares, o
que se pode verificar pela prova produzida em sede policial”.
O constitucionalismo nasce imbuído de um propósito muito claro que é
de proteção aos direitos do indivíduo em face dos governantes. Contudo,
nota-se que o atual Estado Democrático de Direito veem reeditado o
pensamento Grego e Romano. A concepção de mundo que então prevalecia é o
que em filosofia política se chama de organicismo. Nesta concepção
trata-se cada pessoa como se fosse o órgão de um corpo e como tal a
prioridade absoluta é do próprio corpo, caso seja necessário elimina-se o
órgão, amputa-se um dedo gangrenado para o bem do corpo. A valorização
não era dos direitos do indivíduo, mas do bem da comunidade política.
Então nessa concepção organicista havia uma incompatibilidade com o
desenvolvimento do constitucionalismo nesse sentido moderno que nasceu
atrelado a valorização dos indivíduos.
Assim, tempos sombrios rondam nossa sociedade que sem perceber está retrocedendo no tempo iludidos com o doce veneno do expansionismo penal[24] esquecendo que qualquer espaço para investigadores combatentes ou bonecos articuláveis militarizados[25]não existe em nosso sistema processual em vigor e que o
Estado Democrático de Direito deve agir de forma a responder as
verdadeiras necessidades do homem, centro e motor de nossos interesses[26].
[1] Imagem ilustrativa: Federico Borghi/Flickr
[3] AMADEUS. Djeff. MINAGÉ. Thiago.
http://justificando.com/2014/07/11/heresias-devaneios-e-certezas-efemeras-um-nao-ao-feudalismo-dogmatico/
acessado em 27/07/2014.
[4] EINSTEIN, Albert apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. Revista e Atualizada – São Paulo: Saraiva, 2012. p.72.
[5] LOPES JR., Aury. ibid..
[6] CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo. Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 32.
[7] CHOUKR, Fauzi. A Teoria do Garantismo Penal no Direito e no
Processo Penal. Boletim IBCCRIM, n. 77, abr.1999. Disponível em <
http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigos/97-77—Abril—1999>.
Acesso em 14 jun. 2014.
[8] CHOUKR. FERRAJOLI. ibid.
[9] CHOUKR. FERRAJOLI. ibid.
[10] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 112.
[11] CASARA,Rubens R R ; MELCHIOR,Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: Dogmática e Crítica: Conceitos fundamentais. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[12] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p.526.
[13] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
[14] BAYER. Diego. Controvérsias Criminais.
[15] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Apud LOPES JR. op. cit. p. 84.
[16] ZAFFARONI. Ibid.
[17] LOPES JR., op. cit. p. 82.
[18] BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal – Parte Geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p.32.
[19] BITENCOURT. ibid. p.32.
[20] MINAGE. op. cit. p. 95.
[21] MINAGE. Ibid.
[22] PACELLI, Eugênio. COSTA, Domingos Barroso da. Prisão Preventiva e Liberdade Provisória: A Reforma da Lei 12.403/11. São Paulo: Atlas, 2013.
[23] LOPES JR. op. cit. P. 73.
[24] LOPES. Karina. MINAGÉ. Thiago.
http://justificando.com/2014/06/27/populismo-penal-surfistinha-e-o-doce-veneno-expansionismo-funciona/
acessado em 27/07/2014.
[25] MARCONDES. Leonardo Machado.
http://justificando.com/2014/07/03/g-joe-tupiniquim-comandos-em-acao-na-investigacao-criminal/
acessado em 27/07/2014.
[26] PRUDENTE. Neemias Moretti. http://justificando.com/2014/07/24/pena-de-morte-que-nao/ acessado em 27/07/2014.Fonte: http://justificando.com/2014/08/07/processo-penal-midiatico-e-subversao-garantismo/
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