Por Eduardo Baldissera e Caticlys Matiello
Poucas palavras são tão frequentemente
utilizadas no cotidiano da sociedade quanto o vocábulo “poder”. Aliás,
escassas são aquelas que, sem aparente necessidade de reflexão
conceitual, são amplamente utilizadas nos diálogos. Diz-se que fulano
“tem poder”.
No entanto, investigar o termo a fim de
configurá-lo como um verdadeiro saber da dominação requer reflexão mais
aprofundada, notadamente em razão da celeuma de como a vontade é
imposta e como se alcança a aquiescência alheia.
“Será a ameaça de castigo físico, a
promessa de recompensa pecuniária, o exercício de persuasão, ou alguma
outra força mais profunda”[1]
a razão que conduz os indivíduos a abandonarem suas preferências em
detrimento daquelas estabelecidas pelos atores que exercem o poder?
Para Michel Foucault o poder não se
localiza no governo ou no Estado, mas em uma rede complexa de relações.
No mesmo sentido André Zanardo[2]
aduz que o poder não tem morada fixa, mas “sua maleabilidade é tamanha
que quase escorre pelas mãos, e para se ter maior controle é necessário
se criar uma engenharia social complexa”.
Esta “engenharia social” para Foucault é
realizada pelo poder disciplinar, que controla os indivíduos por meio
da vigilância de seus comportamentos, manifestando-se implicitamente,
não por ação violenta, com cunho reparativo ou vingativo, como no
medievo, mas com viés punitivo-educativo, com efeito amplo e invisível.
Ao contrário do poder soberano da Idade
Média, o poder disciplinar não se personifica em um indivíduo como o
rei, mas se materializa nos atores que detém técnicas disciplinares,
como, por exemplo, professores, juízes, policiais, entre outros.
Este poder depende da invisibilidade
dos agentes, pois ressalta a visibilidade do sujeito, aterrorizando-o e
garantindo eficácia perene. É o mesmo conceito utilizado na elaboração
do modelo ideal de centro penitenciário de Jeremy Bentham (panóptico).
Tal concepção pressupõe uma torre
central de observação cujo vigilante enxerga todos os prisioneiros sem
que estes possam saber se estão ou não sendo notados. Segundo Foucault,
ao adotar esta arquitetura circular nas escolas, prisões, batalhões,
hospitais e fábricas, instituições calcadas na disciplina, o poder
torna-se invisível e inverificável. Para dar efeito ao instrumento
opressivo basta que os sujeitos saibam que estão sendo vigiados,
surgindo daí uma relação fictícia de controle cujo disciplinador é o
próprio sujeito, que acredita estar permanentemente exposto à
vigilância. Assim, Foucault afirma que a vigilância substitui a
violência, e, hierarquicamente, ao invés de controlar corpos, adestra
almas.
Para Zigmunt Bauman[3]
a tarefa principal e comum do panóptico era “disciplinar mantendo uma
ameaça constante, real e palpável de punição”, cuja estratégia principal
era “fazer os súditos acreditarem que em nenhum momento poderiam se
esconder do olhar onipresente dos seus superiores, de modo que nenhum
desvio de comportamento, por mais secreto, poderia ficar sem punição”.
Ao invés da simples exclusão (morte no
cadafalso) o poder disciplinar condicionava o comportamento humano por
meio de instituições sociais como, por exemplo, a escola, o quartel e a
prisão, garantindo que servissem aos interesses dos detentores do poder.
Por isso que para ele a função do castigo (reprovação, pena) seria
reduzir os desvios e padronizar as condutas sob um prisma moral.
No entanto, em uma perspectiva mais
contemporânea, Gilles Deleuze aduz que a sociedade disciplinar foi
sobreposta pelo modelo de controle. Enquanto na concepção foucaultiana o
panóptico vigiava os sujeitos fisicamente, na sociedade de controle a
disciplina passou a ser imposta virtualmente.
Segundo ele, neste novo arquétipo o
aspecto disciplinar não desapareceu, mas apenas mudou a atuação das
instituições. Os dispositivos de poder que ficavam circunscritos aos
espaços fechados das instituições (escola, quartel, prisão) passaram a
adquirir total fluidez, o que lhes permitiu atuar em todas as esferas
sociais[4].
Ou seja, na contemporaneidade, a
armazenagem de informações cresceu exponencialmente, de modo que as
pesquisas no Google, conversas no Facebook, e compras com cartão de
crédito passaram a engrossar gigantescos sistemas de dados que
constituem verdadeiros “superpanópticos”, que diferem do modelo
tradicional porque nestes “os vigiados, fornecendo os dados a armazenar,
são fatores primordiais – e voluntários – da vigilância”[5].
O poder tornou-se extraterritorial. Há
vigilância irrestrita e contínua de câmeras e escutas telefônicas que
maximizam o controle dos indivíduos a um patamar abissal, similar a
esposada por George Orwell na distópica obra 1984. Todos podem
vigiar e ser vigiados, de modo que espaços públicos passaram a estar em
permanente sentinela moral. Em síntese, não importa mais onde está quem
dá a ordem, pois o poder tornou-se líquido e dinâmico.
Raquel do Rosário e Diego Augusto Bayer[6]
abordaram tema semelhante. Segundo eles, a sociedade pós-moderna vive
mergulhada em ameaças que quase nunca se realizam, de modo que temos
“medo de perder o emprego, medo do terrorismo, da exclusão. O homem vive
numa ansiedade constante, num cemitério de esperanças frustradas, numa
era de temores”. Estes inimigos fantasiosos, segundo os articulistas,
derivam do medo proliferado pela mídia, verdadeira fábrica ideológica.
Partilhando destes argumentos,
ressaltamos que a mídia tem se utilizado do terror para induzir a
coletividade na supressão das liberdades, especialmente a perda da
privacidade (clamando por mais controle, polícia, prisão). O resultado,
narrado por Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr.[7],
é que para atender aos anseios de punição o Estado tem dado “um
jeitinho para contornar os limites da legalidade”, investigando,
prendendo e condenando sem atentar às garantias individuais.
Se não bastasse, a disseminação das
câmeras de segurança nas vias públicas resultou numa “visibilidade”
permanente dos indivíduos, de modo que se instituiu um controle
eficiente e irrestrito das pessoas. Ademais, com a consolidação das
redes sociais o espaço privado passou a ser público, e as barreiras
físicas, antes limitadas pelas fronteiras do panóptico, deixaram de
existir.
Assim, poucos têm exercido poder sobre
muitos, induzindo o comportamento, vigiando preferências políticas e
fiscalizando o teor de conversas e correspondências eletrônicas (por
espionagem e escutas telefônicas, por exemplo). Pior, condicionam
resultados nas redes sociais e sites de pesquisa com escopo de moldar a
“opinião pública”.
Enfim, o Big Brother de George Orwell
tornou-se real: há olhos em toda parte. A única ressalva é que a
pós-modernidade difere do referido aparato distópico no que diz respeito
aos influenciadores, que ora são descentralizados e compostos por
atores estatais e não estatais, especialmente de empresas multinacionais
e grupos de interesse, que agem de maneira paralela e por vezes
conflitante.
Sorria, você está sujeito diuturnamente aos efeitos e temperamentos dos detentores do poder.
Eduardo Baldissera Carvalho Salles é Mestrando em Direito (UNOESC). Graduando em Ciências Sociais (UFFS). Membro da Comissão de Acadêmicos de Direito da OAB/SC.
Caticlys Niélys Matiello é Pós-graduanda em Filosofia e Direitos Humanos (PUC-PR). Graduada em Direito (UNOCHAPECÓ) e Filosofia (UFFS). Assistente de Promotoria (MP-SC).
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